FamĂlia Ă© tema recorrente em falas de Bolsonaro.
O Ministério da Mulher, da FamĂlia e dos Direitos Humanos materializa os planos do chefe com articulação polĂtica e divulgação de programas federais.
Para especialistas em famĂlia, a atuação em Legislativos e Executivos locais tem viés ideológico. Além disso, foca em dividendos eleitorais ao animar segmentos religiosos e alcançar novos pĂșblicos.
"Com a [sugestão de criação da] Secretaria da FamĂlia, nós sempre sugerimos –tenho horror de imposição, então é diĂĄlogo, sugestão– uma frente parlamentar em defesa da vida. Em defesa da vida não, porque a minha pauta principal é a famĂlia, mas muitas vezes eles [parlamentares] unem com a vida, mas a minha sugestão é da famĂlia", diz Angela Gandra Martins, secretĂĄria nacional da FamĂlia.
Hoje, são aos menos 19 grupos parlamentares que tratam da defesa da vida –antiaborto, principalmente– e da famĂlia, segundo a pasta. A concentração das instalações em 2020 e 2021 mostra a força dessa onda conservadora.
As frentes estão em ao menos cinco estados, como Rio Grande do Sul e Rio de Janeiro, e 14 municĂpios, entre eles capitais como São Paulo, Recife e Campo Grande, além de haver um grupo de parlamentares latino-americanos.
Nos Executivos, as iniciativas podem ser mais singelas. "Pedimos uma mudança nominal: famĂlia e desenvolvimento social, famĂlia e assistĂȘncia social, famĂlia e educação", diz. "E nós ficamos como um coaching."
Para a secretĂĄria nacional, as famĂlias precisam ter uma porta na qual possam bater. A pasta de Damares acompanha 25 pastas, em 2 unidades da Federação e 23 municĂpios. O órgão quer mais.
Nas redes sociais, Martins comemora encontros com polĂticos locais cada vez que uma frente ou uma nova pasta é discutida.
As postagens seguem da hashtag "amorpelafamĂlia"."
Fez isso, por exemplo, com o governador do Rio de Janeiro, ClĂĄudio Castro (PL), aliado de Bolsonaro. Ela celebrou também promessas de secretarias em IngĂĄ (PB), Boa Esperança (MG) e Rio Claro (SP).
Damares deve ser candidata nas eleições deste ano. No mĂȘs passado, disse que poderia disputar algum cargo em seis estados, mas admitiu sua preferĂȘncia pelo AmapĂĄ, onde pode se lançar ao Senado.
Com frentes e secretarias, a pasta de Damares ganha capilaridade ao usar a mĂĄquina pĂșblica das prefeituras, além de firmar parcerias com ministérios de orçamentos robustos, como Cidadania, Educação e SaĂșde.
O órgão coordena hoje programas como FamĂlias Fortes (de prevenção do uso de drogas dos 10 aos 14 anos), Reconecte (para disciplinar o uso de novas tecnologias) e Acolha a Vida (de prevenção de suicĂdio e automutilação).
A ideia é sedimentar a famĂlia como uma polĂtica pĂșblica de Estado, com liberdade e autonomia, sem patrulhamento, diz Martins. Questionada sobre qual o conceito de famĂlia do governo para a elaboração de polĂticas pĂșblicas, ela afirma que prefere pensar em vĂnculos familiares.
Declarações de Bolsonaro ajudam a delinear esse conceito. "Vamos unir o povo, valorizar a famĂlia, respeitar as religiões e nossa tradição judaico-cristã, combater a ideologia de gĂȘnero, conservando nossos valores", disse Bolsonaro no primeiro dia de governo, na Câmara.
Uma cartilha sobre polĂticas pĂșblicas familiares, da Secretaria Nacional da FamĂlia, diz que "o casamento produz efeitos positivos sobre o bem-estar econômico e a saĂșde tanto de adultos quanto das crianças", além de afirmar que a criação de um filho em famĂlia formada por um casal reduz a probabilidade de a criança viver na pobreza.
"Para a advogada e vice-presidente do IBDFam (Instituto Brasileiro de Direito de FamĂlia), Maria Berenice Dias, a valorização do casamento em detrimento de outras formas de famĂlias, como uma mãe solo, é resultado de preconceito.
"A Secretaria da FamĂlia é algo que não se justifica mais, é uma tentativa de retrocesso a um modelo convencional, o modelo da sagrada famĂlia. E a sagrada famĂlia também não era essa bola toda, vamos combinar. Maria casou grĂĄvida, José não era o pai, ele fez uma adoção a brasileira de Jesus, Jesus tinha uma multiparentalidade, porque era filho de José e de Deus. Essa famĂlia não serve de modelo para nada, brincadeira afora", afirma.
A retórica de defesa da famĂlia e da vida jĂĄ foi usada em campanha eleitoral, abertura de assembleia da ONU e ao lado do premiĂȘ da Hungria, Viktor OrbĂĄn, que persegue LGBTQIA+, quando citou lema de inspiração fascista –"Deus, pĂĄtria, famĂlia e liberdade".
Dias critica possĂveis impactos eleitorais das frentes. "Bolsonaro fez essa pauta de costumes, que é uma palavra horrĂvel, como uma maneira de captar votos. Os parlamentares só apoiam para garantir reeleição. Só isso", diz.
Antropóloga, pesquisadora do CEM-USP (Centro de Estudos da Metrópole) e professora do programa de pós-graduação em Educação da USP, Jacqueline Moraes Teixeira diz que o ministério, mesmo com baixo orçamento, busca contato direto, sobretudo em cidades pequenas, com a presença de Damares e Martins.
"É possĂvel pensar na relação com pequenos municĂpios como ampliação do apoio do governo Bolsonaro em regiões em que ele recebeu poucos votos, que estão distantes do interesse direto de Bolsonaro, não são regiões em que ele foi, mas que o ministério prioriza para estabelecer uma relação."
Teixeira, que pesquisa as ações da pasta de Damares, diz que se deve reconhecer que a direita fez da famĂlia uma aposta nos direitos humanos. De acordo com ela, é mais palatĂĄvel discuti-los a partir da perspectiva da famĂlia do que dos direitos civis, por exemplo. Essa estratégia aproxima da agenda conservadora eleitores que não estão vinculados a ela.
"Essa aposta garantiu um trânsito importante de ideias para Bolsonaro desde a campanha de 2018, e isso de alguma maneira atrelado à dinâmica das moralidades, de uma perseguição à ideia de ideologia de gĂȘnero", afirma.
Aliados da secretĂĄria nacional seguem essa linha. "Para mim, [o conceito de famĂlia] é o tradicional, não que eu tenha preconceito", diz a vereadora Nayara Barcelos (PRTB), de Rio Verde (GO).
Coordenadora da frente parlamentar em defesa da vida e da famĂlia que contou com a presença de Martins na instalação em 2021, ela se afirma cristã e articula pautas contra pedofilia, gravidez precoce e evasão escolar. Barcelos estimula parcerias com o governo para implementar FamĂlias Fortes, Reconecte e Acolha a Vida. Com recursos federais escassos, a cidade arca com os custos das ações.
Nem só prefeituras estão na mira. Criada em 2020, a Secretaria ExtraordinĂĄria da FamĂlia do Distrito Federal também busca convĂȘnios com a pasta de Damares. A ideia é aderir ao FamĂlias Fortes.
"É aquela visão: uma famĂlia saudĂĄvel, uma sociedade saudĂĄvel", diz o secretĂĄrio Martins Machado, deputado distrital licenciado pelo Republicanos e pastor da Igreja Universal.
A ideologia, além de programas federais, também entra no radar. Coordenador da frente da Assembleia do Rio Grande do Sul, o deputado estadual Eric Lins (União Brasil) diz que o grupo foi criado em 2019 para reagir a investidas judiciais e de organizações não governamentais contra prerrogativas da famĂlia. Martins também esteve na instalação.
"A gente quer manter a famĂlia coesa, segura", afirma Lins, que é evangélico e pré-candidato a deputado federal –segundo ele, a pedido do ministro Onyx Lorenzoni. "Iremos migrar para o PL", diz sobre a ida para a sigla de Bolsonaro.