Política centenário

Relembrando Paulo Freire como um revolucionário lutador pela liberdade

Por Da Redação

18/10/2021 às 16:43:16 - Atualizado há

Dia 19 de setembro foi o aniversário de Paulo Freire. Freire e eu trabalhamos juntos por quinze anos, o que considero um dos períodos mais esclarecedores da minha vida. Coeditamos uma série de livros e junto com Donaldo Macedo traduzimos e publicamos muitos livros de Freire no mundo de língua inglesa. Ele escreveu o prefácio do meu segundo livro, Teoria crítica e resistência em educação, e colaboramos juntos até ele morrer. Houve, e haverá, muitas comemorações neste centenário de seu nascimento. Muitas delas irão tratá-lo como um ícone em vez do revolucionário que ele realmente foi. Ao fazê-lo, eles falarão de Freire com uma espécie de reverência despolitizante que costumamos associar ao louvor vazio reservado às celebridades mortas. As universidades privadas norte-americanas publicarão declarações celebrando seu trabalho, oferecendo-se como modelos de mudança radical, o que, obviamente, é o oposto do que elas acreditam. Esse desvio é compreensível em uma época de ignorância fabricada, com adoração de uma cultura da celebridade em que a memória histórica se torna perigosa e a dissidência de ideias uma maldição. Freire foi um revolucionário cuja paixão pela justiça social e resistência política foram acompanhadas por seu ódio ao capitalismo neoliberal e aversão a autoritários de todos os matizes políticos. Simplificando, ele não era apenas um intelectual público, mas também um lutador pela liberdade. Os atuais ataques do neofascista Bolsonaro contra ele no Brasil deixam claro o quão perigoso é seu trabalho até hoje.

Uma das contribuições mais importantes de Freire foi a politização da cultura. Ele via a cultura como um terreno de luta que refletia as disputas sociais e capaz de redistribuir poder. Ele rejeitou a noção marxista vulgar de que a cultura era simplesmente um reflexo das forças econômicas. Ele não apenas conectou a cultura com as relações sociais que iam desde a produção e legitimação da guerra de classes, destruição ecológica e várias formas de privilégio, mas também entendeu que a cultura sempre esteve relacionada ao poder com uma força enormemente influente. Isso é especialmente verdadeiro na era das mídias digitais e redes sociais, com seu poder de definir diversos modos de inclusão, consentimento legítimo, produzir formas específicas de agência e reproduzir relações desiguais de poder dentro e fora dos Estados-nação. Ele enfatizou fortemente o papel da linguagem, e dos valores, nas lutas por identidades e recursos analisando como funcionavam os meios de comunicação por meio de diferentes organizações e esferas públicas, como escolas, mídia de massa, aparatos corporativos e outras esferas sociais.

Seu trabalho sobre alfabetização se concentrou em como as práticas culturais capitalistas colocaram certas formas de agência comercializada em prática, definiram e contornaram o espaço público, despolitizaram as pessoas por meio da linguagem de comandos, enquanto mercantilizavam e privatizavam tudo. Cultura e alfabetização, para Freire, oferecem às pessoas um espaço para desenvolver novos modos de agência, resistência coletiva e vínculos emocionais que abraçam formas fortalecedoras de solidariedade. Para Freire, os terrenos da cultura, da alfabetização e da educação eram os terrenos em que os indivíduos adquiriam consciência de sua posição e disposição para lutar por dignidade, igualdade social e liberdade. Segundo ele, a cultura era um campo de batalha, um local de luta, e Freire reconhecia à maneira de Gramsci que toda relação de dominação era “pedagógica e ocorre entre as diferentes forças que a compõem”.

Freire acreditava, antes de mais nada, que a educação estava ligada à mudança social e que as questões de consciência e identidade eram essenciais para tornar a pedagogia central para a própria política. Para ele, educação e escolaridade faziam parte de uma luta mais ampla contra o capitalismo, o neoliberalismo, o autoritarismo, o fascismo e a despolitização e instrumentalização da educação. A ação direta, a educação política e a política cultural definiram para ele novas estratégias de resistência e novos entendimentos da relação entre poder e cultura e como isso moldava questões de identidade, valores e compreensão do futuro. A pedagogia e a alfabetização eram políticas porque estavam conectadas à luta pela agência, às relações contínuas de poder e às pré-condições para conectar o conhecimento e os valores ao desenvolvimento de cidadãos críticos, ativos e engajados. A grande contribuição de Freire foi reconhecer que a dominação não era apenas econômica e estrutural, mas também pedagógica, ideológica, cultural e intelectual, e que questões de persuasão e crença eram armas cruciais para a criação de agentes engajados e sujeitos críticos. Ele também refutou a rota de fuga fácil para os cínicos que igualaram e colapsaram a dominação e o poder. A resistência sempre foi uma possibilidade e qualquer política que a negasse errou ao lado da cumplicidade com os crimes mais hediondos, porém não reconhecidos. Freire foi um intelectual público transformador e um lutador pela liberdade que acreditava que os educadores tinham uma enorme responsabilidade de enfrentar problemas sociais e políticos importantes, de dizer a verdade e de correr riscos, por mais inconvenientes que fossem as consequências. A coragem cívica era essencial para a política e ele personificava o melhor dessa convicção.

Paulo Freire
Na Jornada Nacional “Viva Paulo Freire”, diante das homenagens ao centenário, as ações com os “Sem Terrinha” estão voltadas para o trabalho com a infância a partir das dimensões pedagógica, lúdica, política e criativa. (Foto: Manuela Hernández/ Comunicação MST)

Ao tornar a educação central para a política, Freire conectou ideias ao poder, e consciência crítica à alfabetização para intervir no mundo na luta por justiça econômica, social, de gênero e racial. Ele nunca separou o sofrimento e os constrangimentos massivos impostos pela desigualdade da esfera da política e, ao fazê-lo, conectou as condições, por mais específicas que fossem, para a resistência em enfrentar os constrangimentos que pesavam sobre a vida das pessoas. Freire acreditava que todos os seres humanos podiam “ser-mais”, tinham a capacidade de ser intelectuais, de pensar criticamente, de estranhar o familiar e de lutar individual e coletivamente contra as máquinas destruidoras da imaginação nas zonas de abandono ético, político e social que transformaram as democracias em versões atualizadas do Estado fascista.

Seu trabalho não era simplesmente sobre métodos, mas sobre promover a mudança individual e social de uma forma que dê voz aos que não têm voz e poder aos que são considerados descartáveis. Freire era um lutador pela liberdade, que acreditava profundamente em um futuro em que a democracia radical fosse possível. Ele era um utópico destemido para quem a esperança não era simplesmente uma ideia, mas uma maneira de pensar de outra forma a fim de agir de outra forma e transformar a história. O trabalho educativo e político de Freire se assentou num ideal ético e num sentido de responsabilidade que hoje é atacado, o que atesta a sua importância e a necessidade de o defender; há também a necessidade de evitar que seja apropriado pelas elites governantes; além disso, há uma necessidade de estendê-lo a novas circunstâncias econômicas, culturais e sociais para as quais é desesperadamente necessário na luta contra a política fascista emergente em todo o mundo, especialmente na forma bizarra que tem tomado em diversos países da América Latina e especialmente no Brasil desde o golpe de Estado de 2016.

Freire acreditava que nenhuma sociedade deve ser apenas suficiente para sobreviver e que a luta contra a injustiça é a pré-condição para radicalizar valores, lutar contra a opressão institucional e abraçar uma política global de valores democráticos compartilhados. A alfabetização política para ele foi uma arma para despertar a consciência, encorajar a ação cívica e encerrar a atração de uma política fascista. Freire era perigoso e com razão em um momento em que a história está sendo apagada, aqueles considerados descartáveis estão se expandindo e perdendo suas vidas, e a necessidade de uma consciência anticapitalista e de um movimento social de massa se faz mais crucial do que nunca. O espírito e a política de Freire não devem ser somente celebrados com alegria, mas imitados e fortalecidos em torno da construção de uma nova ética, revolucionária.

 

Henry A. Giroux é professor titular da McMaster University, Canadá, onde preside a Cátedra Paulo Freire de Pedagogia Crítica e Interesse Público.

 

*Artigo traduzido por Gustavo O. Figueiredo, doutor em Psicologia, pesquisador visitante na McMaster University e professor adjunto da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Fonte: Diplomatique
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