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Nossos ouvidos não são penicos!

Por Da Redação

14/02/2022 às 08:08:49 - Atualizado há

Sim, existe bom gosto e mau gosto em música. Não há como dizer que nesta área questão de gosto não se discute. Discute, sim. Porque não se trata apenas de opção estética. O bom gosto resulta de construção cuidadosa e bem conduzida, para a elaboração de produções sofisticadas e de elevado valor para a cultura em que estão inseridas. Já as produções de mau gosto resultam, na maioria dos casos, da opção mercadológica dos divulgadores culturais, mais interessados no faturamento rápido do que no esforço em prol da elevação do gosto musical de seus ouvintes. Ou, o que é pior, estão a serviço de algum projeto político-ideológico.

O filósofo francês Pierre Bordieu (1930-2002), que se dedicou à sociologia e à filosofia, bem como às interseções entre esses dois campos, estudou a fundo a questão da dominação cultural, comum nos sistemas coloniais e em sociedades muito desiguais (como a nossa). Uma de suas conclusões foi a de que a desculturação dos povos traz consequências à cultura, a literatura à arte e… à política.

Segundo o crítico Jamari França (ex-JB, ex-Globo on line), “se a pessoa consome uma música com alto grau de informação em termos de letra e música, digamos a MPB dos anos 1970, ela terá um grau de exigência maior. Se for uma pessoa simples, exposta a um tipo de música de menor conteúdo, sua exigência será menor”.

E será menor inclusive em relação à literatura e à política. Sim, quando a arte e a cultura se abastardam, a exigência em relação à qualidade da política igualmente se reduz. Haja vista o que vem ocorrendo no Brasil. Um povo começa a ser politicamente dominado quando lhe roubam sua cultura e a substituem por outra ou impõem ao consumo simulacros de expressão cultural, simplistas e/ou retardadas. No Brasil de Bolsonaro e sua política de arrasa-quarteirão no setor da cultura, é o que se vem assistindo – e ouvindo – em relação às artes em geral, mas com ênfase na música popular que passou a predominar em praticamente todos os lugares e espaços de execução. Muitas pessoas estão deixando de frequentar restaurantes de cardápios excelentes por não suportarem a péssima qualidade da música do local. Sim, é verdade que sempre houve uma música de baixa extração rolando por aí. Mas era uma opção, e não produto de uma imposição cultural como ocorre hoje. Os donos dos restaurantes, quando confrontados com as reclamações, alegam que executam o que a clientela… gosta. Ou está gostando agora, porque, antes, gostava de produções mais requintadas.

A MPB que hoje domina sem exceção tanto os meios de comunicação como também os bares, restaurantes, supermercados, lojas, oficinas etc., ganhou formidável impulso depois da chegada do atual desgoverno. Isso porque a falta de compromisso com o bom gosto incentiva a disseminação desse tipo de música. Na maioria, de melodias repetitivas e descompromissadas com a invenção e a criatividade, embalando letras de apelo direto e ostensivo a temas ligados ao sexo, à violência, e de incentivo ao consumo de bebidas. Parece até discurso moralista, mas a verdade é que tanto o sexo como a bebida e as drogas, leves ou pesadas, sempre tiveram lugar garantido na MPB mas sempre mereceram tratamento, digamos, minimamente elegante. Ao contrário das produções atuais, em que a “grossura”, ou seja, a ausência de sutileza e a apelação direta, inclusive com uso de palavrões cabeludos, atinge diretamente o público-alvo. Esse público não apenas é cativado como se transforma em multiplicador dessas produções rasteiras, ampliando seu alcance.

O fenômeno começa a preocupar estudiosos do assunto, que, mesmo timidamente, começam a se articular para construir alguma reação ao descalabro. Tive um amigo, o saudoso radialista piauiense Gilberto Melo, de quem me tornei compadre, que foi quem me apresentou à Bossa Nova, lá na minha já distante juventude, presenteando-me com um LP de João Gilberto, dizendo: “ouve isso aí, é diferente, coisa fina, vale a pena conhecer”. Ele foi proprietário de uma rádio onde só veiculava o filé da MPB. Já naquela época, alguns amigos reclamavam porque a rádio dele não tocava um brega, ou mesmo um axé, e olha que existem axés muito bons. “Monta uma rádio pra ti e põe essas coisas pra tocar, porque na minha não vai tocar não”, respondia, bravo. Morreu mantendo a palavra. Quando vinha a Brasília, gastava boa parte de seu tempo ouvindo a programação de extremo bom-gosto da Rádio Nacional, lá nos anos 80. Bom gosto que se manteve até outro dia, quando algum dirigente afinado com a baixaria a gosto dos que estão à frente do atual governo, resolveu destruir um edifício ao culto estético, que levou dezenas de anos de esforço e cuidado de profissionais dedicados para se consolidar. Um ex-locutor da Nacional outro dia ligou para um programador, seu amigo, para saber por que diabos a rádio havia passado a executar peças de extrema pobreza musical. Em resposta, ouviu que recebera ordens e, mesmo a contragosto, para manter o emprego, está sendo obrigado a programar produtos do submundo da MPB.

Claro que, por trás da determinação para rebaixar o nível, está o interesse em ampliar a audiência não pelo apelo ao bom, mas ao mau-gosto, de retorno rápido e seguro. É evidente a intenção populista, comum a todos os projetos de dominação, como é o nosso caso. Pois é importante manter o fornecimento regular de lixo cultural para atender à atual demanda e manter no cabresto a massa de manobra que sustenta o atual governo. Existe, sim, uma questão política (via Bordieu) na base da ação deletéria de dilapidação dos alicerces da boa música popular do Brasil. Seus melhores realizadores, guardadas algumas exceções, de Caetano Veloso a Gilberto Gil, de Chico Buarque a Aldir Blanc, de Nara Leão a Gonzaguinha e assim por diante, todos são ou foram alinhados à esquerda. E são reconhecidos nacional e internacionalmente como exponentes do bom gosto musical, muitos até incluídos na categoria dos gênios. Como são de esquerda, incomodam os ouvidos da extrema direita no poder. Portanto, precisam ser proscritos. E isso vem sendo feito de forma sistemática e contínua, pela ocupação de todos os espaços pelas produções de baixo ou de nenhum nível.

Não é de se estranhar, basta ver o violento arrocho que acaba de ser dado na Lei Rouanet. Em plena semana das comemorações da Semana de Arte Moderna de 1922, o governo reduziu a capacidade de financiamento da indústria cultural brasileira. O comentarista político Luiz Carlos Azedo estabeleceu de imediato a ligação, ao frisar que o arrocho “é mais um elemento do ambiente político e ideológico tóxico que estamos vivendo, pautado pelo obscurantismo da política oficial”.

Anda difícil ligar o rádio, assistir a programas de auditório da televisão ou ir a qualquer local público. Outro dia, com a família, ficamos uns dias em Caldas Novas, Goiás, aproveitando as piscinas de águas termais. Tivemos de suportar o que havia de pior na produção breganeja. Mas atenção: cuidado! Música caipira de raiz não tem nada a ver com o sertanejo vagabundo que roda por aí. As canções de Tonico e Tinoco e Zé Mulato e Cassiano, pra ficar em dois exemplos, são maravilhosas. Não ouvimos nenhuma lá. Já o lixo rolou solto.

O certo é que o descalabro está em curso. Repetindo: a dominação de um povo começa pela sua cultura. Depois, tudo é possível.

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