SaĂșde

Após 5 anos, crianças com microcefalia têm situação agravada por pandemia

Por Notícias Ao Minuto

24/08/2021 às 23:43:51 - Atualizado hĂĄ
Notícias Ao Minuto

Alessandro, Laura, Matheus e Pérola fazem parte do primeiro grupo de crianças nascidas com a sĂ­ndrome congĂȘnita do zika no Brasil, entre 2015 e 2016. Hoje com 5 anos, tiveram algum nĂ­vel de regressão em seu desenvolvimento após suspenderem total ou parcialmente o tratamento. São acompanhadas pelo Estadão desde o primeiro ano de vida. Quando completaram 12 meses, uma reportagem especial mostrou o descaso governamental na oferta de terapias e as dificuldades enfrentadas pelas famĂ­lias. Quatro anos depois, o cenĂĄrio não é muito diferente.

Segundo o Ășltimo boletim epidemiológico do Ministério da SaĂșde sobre o tema, publicado em fevereiro, das 2.953 crianças vivas com sĂ­ndrome congĂȘnita associada ao zika, 56,4% estão recebendo atendimento especializado. E o problema da falta de acesso às terapias pode ser ainda maior. Isso porque não se sabe ao certo o nĂșmero real de crianças vivendo com as sequelas da SCZ no PaĂ­s por causa do alto nĂșmero de casos suspeitos da sĂ­ndrome que ainda não tiveram investigação concluĂ­da.

De 2015 a 2020, foram notificadas 19.622 suspeitas do quadro, das quais 3.577 foram confirmadas e 2.890 estão sob investigação, mais de 500 referentes a nascimentos ocorridos nos anos de 2015 e 2016. Isso quer dizer que o PaĂ­s pode ter centenas ou milhares de crianças com alguma sequela do vĂ­rus sem nem constar nos registros oficiais - e provavelmente sem contar com assistĂȘncia profissional.

Considerando apenas o ano de 2020, 1.007 novos casos foram notificados, dos quais 35 (3,5%) foram confirmados e 597 (59,3%) permanecem em investigação. O próprio ministério ressalta em seu boletim de fevereiro que os casos sem resolução dificultam a elaboração de polĂ­ticas pĂșblicas e destaca que, embora o perĂ­odo crĂ­tico do surto tenha terminado, o PaĂ­s vem registrando novos casos da sĂ­ndrome. "O alto porcentual de casos em investigação pode comprometer o conhecimento do verdadeiro cenĂĄrio epidemiológico da SCZ no Brasil. A notificação dos casos suspeitos só faz sentido se devidamente investigados, de modo a produzir informação confiĂĄvel e guiar o planejamento das ações para enfrentamento da doença", destaca o documento.

Também chama a atenção a alta mortalidade entre essas crianças. Dos 3.423 nascidos vivos entre 2015 e 2020 com o diagnóstico confirmado da sĂ­ndrome, 493 jĂĄ morreram, o equivalente a 14,4%. Se calculada a taxa de mortes por mil nascidos vivos até 5 anos, o Ă­ndice das crianças com a sĂ­ndrome é de 144, dez vezes maior do que esse Ă­ndice na população geral da mesma faixa etĂĄria (13,9).

Para Germana Soares, presidente da União Mães de Anjos (UMA), associação de Pernambuco que representa famĂ­lias de crianças com a sĂ­ndrome do Estado, a pandemia só agravou as dificuldades vividas pelas crianças e suas famĂ­lias. "Guilherme, sem a fisioterapia, foi ficando com o pé atrofiadinho e tive de passar com ele numa consulta de urgĂȘncia no ortopedista", explica ela, referindo-se ao filho, também de 5 anos.

A médica Mariangela Rocha, coordenadora da infectologia pediĂĄtrica do Hospital UniversitĂĄrio Oswaldo Cruz (HUOC), no Recife, referĂȘncia no Estado para acompanhamento das crianças com a mĂĄ-formação, conta que, durante a pandemia, a unidade se tornou referĂȘncia também para atendimento de covid-19, o que dificultou a manutenção do atendimento multidisciplinar. "Ficamos praticamente com todos os leitos dedicados à covid", conta ela, que também teve de se distanciar do trabalho presencial por ser do grupo de risco.

A médica diz que os terapeutas do hospital chegaram a gravar vĂ­deos com instruções para os familiares fazerem estimulação com as crianças em casa, mas que, por mais dedicados que sejam os pais, dificilmente os esforços substituirão um atendimento profissional. A mãe de Guilherme conta que, mesmo antes da pandemia, os centros de reabilitação que atendiam as crianças foram reduzindo as vagas. "E alguns centros mais distantes da capital tĂȘm dificuldade para contratar profissional porque ninguém quer estar em um local mais pobre e distante para ganhar R$ 1,4 mil. São vĂĄrios obstĂĄculos", diz.

Para Monique Oliveira, doutora pela Faculdade de SaĂșde PĂșblica da USP que, em sua tese, pesquisou a relação da ciĂȘncia com as famĂ­lias no zika vĂ­rus, "o esforço da comunidade cientĂ­fica foi fechar a relação de causalidade entre o zika e a microcefalia". "Mas essa era a pergunta mais relevante? Não vemos o mesmo esforço da comunidade cientĂ­fica para respostas como o modelo de intervenção que precisa ser pensado para essas crianças. Então fica uma frustração das famĂ­lias."

Governo federal

Questionado, o Ministério da SaĂșde informou que, atualmente, hĂĄ 506 serviços de reabilitação que recebem orçamento de custeio do governo federal. De acordo com a pasta, muitos desses serviços "passaram a utilizar estratégias alternativas por causa da pandemia, como o teleatendimento". Além disso, ressaltou que foram investidos, desde 2015, mais de R$ 223 milhões em pesquisas relacionadas aos temas zika e microcefalia.

Alessandro

'11 KG E DIFICULDADE PARA PODER COMER

O pesadelo da famĂ­lia de Alessandro começou com a dificuldade dele em se alimentar pela boca após parar com as sessões de fonoaudiologia. Com o atendimento semanal suspenso por causa da pandemia, o garoto de Goiana, cidade a 70 km do Recife, passou a ter dificuldades para deglutir e começou a perder peso. Chegou a pesar, no inĂ­cio de 2021, 11 quilos - o esperado para crianças na faixa dos 2 anos.

Segundo a mãe, a dona de casa Rayane Gomes Mendes, de 24 anos, por alguns meses o menino teve de ser nutrido por sonda - primeiro pela via nasogĂĄstrica, aquela que é colocada do nariz até o estômago. "Era fevereiro de 2021 e os hospitais todos lotados por causa da covid, eu fiquei muito nervosa, tremia, não conseguia dormir quando ele estava nessa situação", diz ela. A angĂșstia de ver o filho internado com quadro de desidratação fez a jovem desenvolver depressão, doença que vem agora tentando controlar com medicamentos e terapia.

Rayane espera agora que o menino consiga retomar integralmente as terapias que fazia em trĂȘs hospitais.

Laura

'ELA NÃO SENTA, NÃO USA A MÃO'

Sem fisioterapia, a rigidez muscular, tĂ­pica das crianças com sequelas neurológicas, se intensificou. "Ela teve de entrar até no Rivotril por causa da musculatura rĂ­gida. A fisioterapia era boa para relaxar os mĂșsculos, para poder fazer cocô. Na fono, fazia exercĂ­cios para conseguir deglutir a saliva, para não broncoaspirar. Alimento, ela não consegue comer, usa sonda. Com a suspensão, não tem mais evolução. Não senta, não pega nada com as mãos", diz a dona de casa Jaqueline Oliveira, de 30 anos, mãe de Laura.

Como se não bastassem os prejuĂ­zos em sua qualidade de vida, a menina de 5 anos (gĂȘmea de Lucas, que nasceu sem a mĂĄ-formação) foi afetada até pela crise econômica na pandemia. Seu pai perdeu o emprego após a empresa onde trabalhava fechar - o dono morreu de covid.

Sem a principal renda da casa e com Laura e mais trĂȘs crianças para sustentar, Jaqueline e o marido decidiram, em abril, voltar para Pernambuco, onde nasceram e tĂȘm familiares. Foram viver em Camutanga, municĂ­pio de 8 mil habitantes distante pouco mais de 100 quilômetros do Recife. Ao procurar assistĂȘncia especializada na cidade, Jaqueline se decepcionou. Segundo ela, os médicos "nem sabiam lidar" com uma criança com microcefalia.

Matheus

TRATAMENTO PAGO POR VIA JUDICIAL

Matheus é uma das poucas crianças com a sĂ­ndrome congĂȘnita do zika que conseguiu manter as terapias. Como é beneficiĂĄrio de um bom plano de saĂșde oferecido pela empresa da mãe, ele pôde continuar com sessões domiciliares de fisioterapia, fonoaudiologia e terapia ocupacional, além de hidroterapia e psicologia fora de casa. HĂĄ trĂȘs anos, também frequenta uma clĂ­nica privada que oferece therasuit, terapia inovadora que usa equipamentos, vestimentas e órteses para estimular de diferentes maneiras as crianças com problema motor.

A famĂ­lia entrou na Justiça para obrigar o convĂȘnio a arcar com os custos da assistĂȘncia. "Ganhamos. O tratamento custa de R$ 9 mil a R$ 12 mil por mĂȘs", conta a mãe, a bancĂĄria Isabel Cristina Gomes de Albuquerque, de 43 anos.

Pérola

'SE EU MORRER, QUEM VAI CUIDAR?'

Durante quase um ano, Pérola ficou sem frequentar as terapias. No meio de 2021, Marcione Gomes da Rocha, de 33 anos, conseguiu que a filha retomasse o tratamento duas vezes por semana em unidades de saĂșde da cidade. A vendedora conta que ficou receosa em sair do isolamento por medo de se contaminar e deixar desamparados os filhos, outro dilema das mães de menores com microcefalia.

Se não vão às terapias, veem os filhos regredirem no desenvolvimento. Se decidem ir, ficam com o medo de uma contaminação."Se eu morrer, quem vai cuidar dessas crianças?", questiona.

Mesmo com a retomada das terapias hĂĄ cerca de dois meses, os danos da interrupção da assistĂȘncia ainda são evidentes para a mãe. "Ela pode ter de fazer cirurgia", conta.

ESTA REPORTAGEM FOI FEITA COM O APOIO DO DART CENTER FOR JOURNALISM & TRAUMA, UM PROJETO DA ESCOLA DE JORNALISMO DA UNIVERSIDADE COLUMBIA (EUA)

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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