Política Meio Ambiente

O apagamento intencional dos marginalizados na enchente gaúcha: o que ainda não aprendemos?

Por Iris Nabolotnyj* Haverá linha do tempo? Para tecer a estética catástrofe? Em cada ponto extremo um nó de viração e tempestade, corroídas pela ganância ignorância negação climática… Haverá linha do tempo? Para reconstruir as vestes do tecido social? (Iris Nabolotnyj Martinez) A devastação das enchentes gaúchas retrata um cenário doloroso de apagamento sistemático das vozes marginalizadas.

Por Da Redação

13/06/2024 às 17:37:46 - Atualizado há

Por Iris Nabolotnyj*

Haverá linha do tempo?
Para tecer a estética catástrofe?
Em cada ponto extremo um nó
de viração e tempestade,
corroídas pela ganância ignorância
negação climática…
Haverá linha do tempo?
Para reconstruir as vestes do tecido social?

(Iris Nabolotnyj Martinez)

A devastação das enchentes gaúchas retrata um cenário doloroso de apagamento sistemático das vozes marginalizadas. Os primeiros a testemunhar silenciosamente essa realidade, onde o desenvolvimento sustentável e a preservação do ecossistema são negligenciados, foram os guaranis, cuja história remonta antes da chegada dos colonizadores europeus, enquanto saboreavam o mate.Diante desse contexto, à medida que os dias se alongam e as sombras se estendem, surge a necessidade premente de reflexão: quanto ainda precisamos aprender?

Mesmo envolvidos no acolhedor ritual da mateada ao amanhecer ou ao entardecer, muitos de nós negligenciamos aspectos essenciais de nossa própria tradição. Permanecemos ignorantes quanto à urgência da reforma agrária e à adoção de hábitos de consumo agroecológicos.

Em nossa busca por respostas, ainda depositamos nossa fé em algo superior para resolver os problemas que nós mesmos criamos, desconsiderando a complexidade das relações entre nós e o meio ambiente que nos cerca.

É imperativo resgatar a memória histórica para compreender que aquilo que atualmente consideramos como tradição é apenas um fragmento de uma narrativa mais ampla. Esta narrativa, por sua vez, está repleta de lacunas devido à falta de informações provenientes das epistemologias ancestrais.

Registros históricos nos transportam para o ano de 1609, quando os jesuítas, em sua missão de catequização, depararam-se com os povos guaranis na fronteira oeste do estado. Testemunharam então uma sociedade matriarcal, onde as mulheres desempenhavam papéis de liderança, cuja grandiosidade era simbolizada pelos longos cabelos.

Porém, a imposição das normas culturais europeias trouxe consigo não apenas a violência da colonização, mas também o apagamento das identidades e saberes dessas mulheres, que eram eximias horticultoras, coletoras, ceramistas, figuras centrais em rituais, mas que foram rotuladas de forma pejorativa em correspondências endereçadas à Corte Espanhola como "demoníacas".

Hoje, mais de quatro séculos depois, o Rio Grande do Sul abriga mais de 140 comunidades indígenas, incluindo aldeias como Kaingang Guarani em Porto Alegre e TekoáKoenju em São Leopoldo. No entanto, após a recente tragédia das enchentes, essas comunidades enfrentam severos desafios, afetando mais de 80 territórios indígenas na região.

O descaso das autoridades governamentais foi ainda mais evidente, desde a destruição criminosa de casas e edificações na aldeia Pekuruty, que foi realizada sem autorização dos moradores pelo Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (DNIT), até o desamparo institucional que agravou a vulnerabilidade dessas populações.

A situação é particularmente crítica em municípios como Porto Alegre, Canoas, Eldorado, Esteio e Sapucaia do Sul, onde as organizações indígenas e indigenistas estão em estágio preliminar de levantamento para auxiliar campanhas de doação e apoio por parte das autoridades públicas.

Além dos povos indígenas, os registros datados desde o século XVIII, remontam que no período colonial rio-grandense sobrevivem cerca de 250 quilombos em todo o estado. Essas comunidades se formaram principalmente a partir da resistência de pessoas negras escravizadas que fugiam das fazendas em busca de liberdade e autonomia. Os quilombos urbanos na região metropolitana contam com 11 territórios autodeclarados que representam centros de identidade e cultura da comunidade negra, mas que também enfrentam desafios marcantes de discriminação, pobreza e acesso limitado a serviços básicos.

Os quilombolas também foram atingidos pela negligência estadual à direita do espectro político diante da enchente gaúcha, como testemunhamos nos territórios de Unidos do Lajeado, Vila do Sabugueiro, bairro Sarandi, entre outros. Nessas áreas, famílias inteiras perderam suas casas e meios de subsistência devido à falta de acesso a serviços básicos e à destruição causada pelos diques que falharam.

Essa tragédia, porém, vai além da mera perda material. Ela representa o desaparecimento da memória histórica, da identidade política, de laços profundos com a terra ancestral. As consequências devastadoras poderiam ter sido evitadas com ações preventivas por parte dos governos estadual e municipais, mais especificamente, da prefeitura de Porto Alegre.

No entanto, o governador Eduardo Leite (PSDB) e o prefeito Sebastião Melo (MDB) ignoraram alertas e sucatearam estruturas de proteção civil, desconsiderando modelos científicos que previam a tempestade iminente. Eles permanecem à frente das ações emergenciais, administrando recursos públicos enviados por voluntários via pix a seu bel prazer, enquanto a população enfrenta a maior destruição climática da história do Rio Grande do Sul, uma dor que a própria destruição material não dimensiona. Suas escolhas irresponsáveis e a priorização de interesses privados contribuíram diretamente para a maior devastação ambiental da história do estado, evidenciando sua culpabilidade criminosa pelos danos humanos, sociais, políticos e econômicos.

Enquanto refletimos sobre o respeito à terra que pisamos e sobre a ordem natural que aceitamos sem questionar, as vozes das comunidades marginalizadas estão sendo cada vez mais apagadas de nosso estado. A ganância e a ignorância não questionam a estética da catástrofe; pelo contrário, o apagamento intencional das vozes marginais é um projeto político arquitetado. Essa tragédia vai além da perda material; é o silenciamento das vozes que clamam por justiça.

Nossa terra implora por respeito, nossas tradições clamam por reconhecimento, e nossos povos anseiam pelo direito de pertencer. Não podemos nos dar ao luxo de repetir os mesmos erros nas próximas eleições. Precisamos eleger representantes comprometidos em preservar e valorizar as vidas e culturas que formam o verdadeiro patrimônio do Rio Grande do Sul. As águas que engoliram nossas cidades ecoam as identidades apagadas, nos lembrando do alto preço de reconstruir o tecido social. Este é um apelo para ouvir, aprender e agir, antes que seja tarde demais.

*Iris Nabolotnyj Martinez é gaúcha, fronteiriça, feminista, doutora em Ciência Política (UFRGS), mestra em Políticas Públicas (UNIPAMPA) e bacharela em Ciências Sociais (UNIPAMPA)

Fonte: ICL Notícias
Comunicar erro
Jornalista Luciana Pombo

© 2024 Blog da Luciana Pombo é do Grupo Ventura Comunicação & Marketing Digital
Ajude financeiramente a mantermos nosso Portal independente. Doe qualquer quantia por PIX: 42.872.330/0001-17

•   Política de Cookies •   Política de Privacidade    •   Contato   •

Jornalista Luciana Pombo
Acompanhantes GoianiaDeusas Do Luxo