Geral Guilherme C. Carneiro

Locadoras, experiências e saudades

Enquanto assobiava despreocupadamente, o homem desenrolava um longo cartaz que seria fixado na entrada da locadora.

Por Da Redação

16/06/2023 às 21:08:37 - Atualizado há

Enquanto assobiava despreocupadamente, o homem desenrolava um longo cartaz que seria fixado na entrada da locadora. No instante em que meus olhos observavam o movimento manso e lento do homem, a puxar com uma das mãos a parte final do cartaz, todas as suas cores e letras não resultavam em nenhum filme conhecido ou em algum lançamento que acabara de sair do cinema.

Se me lembro bem, diminuí o ritmo dos meus passos, ansioso para o resultado final, para o término fixação do cartaz e da especulação da obra que seria anunciada. Mas não pude aguardar: fui puxado pelas mãos firmes de meu pai ao interior da locadora.

O ambiente, pela imagem já cansada que evoco dele, era recheado de diferentes tons de laranja, com corredores que pareciam labirintos que se abriam para vários novos caminhos e novos corredores, com altas prateleiras organizadas por gênero, ordem alfabética ou ano de lançamento.

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O ritual que se materializou entre mim e meu pai, era de primeiro nos dirigirmos ao corredor do gênero de ação, procurar por algum dos filmes já conhecidos, se familiarizar com os novos e, então, cada um seguir seu rumo nesta imensidão de corredores, e nos encontramos novamente na mesma sessão com três candidatos ao filme da noite.

Geralmente íamos a locadora após o jantar, que se dava tarde da noite, limitando nosso tempo de procura. Meu pai tinha sono, não gostaria de começar o filme na madrugada e nem mesmo de finaliza-lo na manhã seguinte.

Mas isso era sempre esquecido e raramente respeitado. Nunca mencionamos explicitamente essa etapa importante do ritual: a de que gostávamos de passar longas horas apenas procurando, imaginado os desfechos de cada filme, a voz dos personagens, a qualidade dos efeitos especiais.

Essa busca, contudo, era sempre individual, porque o ato de perder-se no interior de uma locadora – experiência herdada do movimento estudioso das bibliotecas – necessitava desse diálogo interior, da atenção desinteressada, no máximo compartilhada com outros seres também presos a sua solidão.

No final, conforme combinado, me encontrava novamente com meu pai no corredor do gênero de ação, e discutíamos as opções propostas. Talvez por personalidade ou gosto pela repetição, dois terços de meus filmes eram os já vistos por nós, mas que a mim deveriam ser vistos de novo, como se alguma coisa daquele filme ainda precisava ser dito, ainda precisava ser pensado.

Meu pai não: eram sempre os novos, mesmo que fossem lançamentos de anos atrás. Não me recordo como resolvíamos esse empecilho de pai e filho, mas acredito que era com base na pura retórica: ele, a novidade, eu, o familiar.

Com a chegada do streaming, tudo mudou. Alegrávamos com a facilidade de realizar esse mesmo ritual de escolha no conforto de casa, pelos botões mágicos do controle remoto. Tudo indicava uma renovada praticidade tecnológica. E, de fato, foi isso mesmo.

Mas hoje, vejo que perdi algo com o fim das locadoras, e não quero aqui tecer julgamentos metaculturais sobre o destino da civilização com o progresso da tecnologia e o avanço do mundo virtual.

É um tema que já começa a demonstrar cansaço, e não creio que o fim dos tempos teria como um de seus pressupostos o simples e universal sentimento do tédio. Antes, só queria descrever a experiência da locadora, e de que sinto saudades dela, e de toda a sua falta de prática, se comparada com o streaming.

E agora, terminado este texto, consigo me lembrar de qual filme aquele cartaz promovia: era o "Eu Sou a Lenda", estrelado por Will Smith, lançado em 2007.

Por isso, creio que possa definir minha saudade pelas locadoras da seguinte maneira: a perda de um maravilhoso encanto infantil.

Fonte: Massa News
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