SaĂșde Últimas NotĂ­cias

Depois do laudo: famílias TEA se mobilizam por direitos e combate ao preconceito

Por Brasil de Fato

02/04/2023 às 19:52:22 - Atualizado hĂĄ

As histórias são semelhantes: pais, mães e cuidadores são chamados na escola após o professor identificar caracterĂ­sticas que não combinam com a etapa de desenvolvimento da criança. Em casa, os pais jĂĄ haviam percebido atrasos na fala, problemas de coordenação motora, desinteresse pelos colegas, ou outros pontos de atenção.

A partir daĂ­, tem inĂ­cio uma temporada de visitas a profissionais de saĂșde de especialidades até então desconhecidas. São diversos exames, testes e avaliações até a chegada do laudo: Transtorno do Espectro Autista (TEA), um registro frio, destrinchado em nĂșmeros de CID e indicações para terapias, que diz pouco sobre quem realmente são as crianças autistas.

"Eu gosto de estudar, jogar videogame, ler e andar de caiaque", conta Gustavo Vassoler, que tem 13 anos, mora em Guarapari (ES) e é uma criança dentro do espectro. "O mais desafiador para mim é viver em um mundo onde as pessoas não tĂȘm informação e não buscam informações sobre autismo."

E é exatamente para ampliar essa compreensão que hoje (2) é comemorado o Dia Mundial de Conscientização do Autismo, uma data para ajudar a quebrar preconceitos e estereótipos sobre o autismo ou, no termo atualizado, Transtorno do Espectro Autista (TEA). Trata-se de um distĂșrbio no desenvolvimento do cérebro que afeta a capacidade de relacionamento com pessoas e com o ambiente.

Estudos estimam que 1 em cada 58 crianças no mundo nasce dentro do espectro. Só no Brasil, o nĂșmero de pessoas autistas chega a 2 milhões, segundo dados do Ministério da SaĂșde.

Mas os nĂșmeros também dizem pouco sobre as famĂ­lias autistas e os desafios e conquistas que elas alcançam no seu dia a dia, que vão de o uso correto dos talhares pelas crianças a aprovação de leis no Congresso Nacional garantindo direitos para autistas.

"Quando se fala em autismo a maioria dos profissionais ainda imagina casos severos, de pessoas que não falam e não comem, mas não é assim. O autismo é um espectro amplo", pontua Emanuele Teixeira Vassoler, mãe do Gustavo e fundadora do FamĂ­lia TEA, um grupo do Espirito Santo que reĂșne pais de crianças dentro do espectro. "Um laudo não pode anular uma criança."


Pesquisas recentes apontam que predisposições genética pode não ser principal responsĂĄvel pelo autismo / Foto: Reprodução/TV Brasil

Entendendo o TEA

O Transtorno do Espectro Autista (TEA), que no passado era chamado apenas de "autismo", engloba diferentes transtornos como: Autismo Infantil, Autismo de Alto Funcionamento, Autismo AtĂ­pico, Transtorno Global do Desenvolvimento, Transtorno Desintegrativo da Infância e SĂ­ndrome de Asperger.

As causas do TEA ainda não são totalmente conhecidas. Por muitos anos, as pesquisas cientĂ­ficas avaliaram predisposições genética, mas jĂĄ hĂĄ evidĂȘncias de que fatores hereditĂĄrios são responsĂĄveis por somente metade do risco de desenvolver TEA. Os demais fatores estariam ligados às condições ambientais que impactam o feto, como estresse, infecções, exposição a substâncias tóxicas, complicações durante a gravidez e desequilĂ­brios metabólicos.

As caracterĂ­sticas de comportamento, no entanto, são bastante divulgadas. Segundo o Manual Diagnóstico e EstatĂ­stico de Transtornos Mentais DSM5, as pessoas dentro do espectro podem apresentar dificuldades de comunicação e interação social, hipersensibilidade ao som, a luz e ao toque e padrões restritivos de comportamento – incluindo interesse fixo em alguns assuntos e movimentos repetitivos, em geral uma forma dos autistas reorganizem os pensamentos.

As crianças, mesmo bebĂȘs com poucos meses de vida, apresentam dificuldade para se comunicar, interagir socialmente, manter contato visual, imaginar e fazer expressões faciais e gestos, além de seletividade alimentar, manias, apego excessivo a rotina e hiperfoco.

É o caso do Théo Hiroshi Sizukusa de Carvalho, uma criança dentro do espectro, de 5 anos, que mora em Aparecida de Goiânia. "Ele tem hiperfoco em letras e nĂșmeros. Desde os dois anos, quando começou a soltar as primeiras palavras, ele adora repetir letras e nĂșmeros. Ele ama o alfabeto e jĂĄ sabe escrever", conta a bióloga, PatrĂ­cia Vieira Sizukusa, mãe do Théo. "Desde 7 meses ele jĂĄ mostrava sinais de autismo: quando ele aprendia uma nova palavra, a repetia muitas vezes e dia seguinte não sabia mais. Também não atenda quando chamĂĄvamos. Quando fez um ano e trĂȘs meses ele ainda não falava, o pediatra encaminhou para o neuro, que deu o diagnóstico."

Essa, porém, é a história do Théo. Especialistas ressaltam que não hĂĄ padrões quando se fala em crianças autistas: elas podem até partilhar dificuldades, mas de formas diferentes, com mais ou menos intensidade.

Essas particularidades foram agrupadas nos chamados "nĂ­veis de suporte", uma escala que classifica o grau de auxĂ­lio a pessoa TEA precisa para realizar atividades. Quem tem grau 1 de suporte, por exemplo, apresenta prejuĂ­zos leves, que não necessariamente o impedirão de estudar, trabalhar e de manter relacionamentos com outras pessoas. JĂĄ quem tem grau 2 de suporte, terĂĄ menos independĂȘncia. A maior escala é o grau de suporte 3, no qual a pessoa manifesta dificuldades mais severas e costuma precisar de apoio ao longo da vida.

Para além dos desafios, as pessoas TEA podem ter habilidades que chamam a atenção, como extrema facilidade para aprender algo novo, muita atenção aos detalhes, ótima memória e grande concentração em assuntos de seu interesse. Cada pessoa dentro do espectro apresenta um conjunto de sintomas, com caracterĂ­sticas bastante particulares, que influenciam na forma como ela se relaciona, se expressa e se comporta.


Aceitação e acolhida é caminho para que crianças autistas possam superar desafios / Foto: Maia Rubim/Sul21

"Precisei ser outra mãe"

Encarar o diagnóstico não foi um processo simples para PatrĂ­cia, assim como para a grande maioria dos pais de crianças atĂ­picas, que se deparam com medos, angĂșstia, dĂșvidas, profissionais despreparados e o ainda grande preconceito existente.

"No começo foi bem difĂ­cil falar sobre o diagnóstico, porque eu sabia que a partir daquele momento eu teria que ser outra mãe. Ser uma mãe atĂ­pica é bem mais complicado", conta. Entre os desafios, estão mudanças na rotina das famĂ­lias, que passam a dedicar parte de seus dias às terapias multidisciplinares, o método mais recomendado para estimular o desenvolvimento de crianças TEA.

A rotina pode incluir, por exemplo, psicologia, fonoaudiologia, fisioterapia e terapia ocupacional, além das consultas e acompanhamentos com médicos especialistas. Essas diferentes terapias associadas testam e exercitam as habilidades fĂ­sicas, sociais, comunicativas e adaptativas das crianças, permitindo que elas ganhem mais autonomia e independĂȘncia.

"O Théo toma medicação e faz terapias de terça e sexta, que o ajudam muito", diz PatrĂ­cia. Essa, porém, não é a realidade de todas as famĂ­lias. Muitos pais e mães não conseguem acessar tratamentos para seus filhos na frequĂȘncia necessĂĄria para estimular e desenvolver as crianças, nem pelo Sistema Único de SaĂșde (SUS) nem por convĂȘnios médicos.

Desde 2012, Lei Berenice Piana institui a PolĂ­tica Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista e garante a elas os mesmos direitos das pessoas com deficiĂȘncia no sistema pĂșblico de saĂșde. Além disso, em outubro de 2021, o Senado aprovou um Projeto de Lei que amplia o atendimento aos autistas no SUS, que passou a oferecer atenção integral às necessidades de saĂșde da pessoa com TEA, incluindo diagnóstico precoce e atendimento multiprofissional. A proposta foi feita por uma mãe de autista.

No mesmo ano, a AgĂȘncia Nacional de SaĂșde (ANS) publicou uma resolução normativa que obriga os planos de saĂșde a oferecer, além das consultas ilimitadas com médicos e dentistas, sessões ilimitadas de fisioterapia, psicologia, terapia ocupacional e fonoaudiologia. No entanto, a ANS não obriga o plano a ter profissionais capacitados em tratamentos especĂ­ficos.

"As leis são maravilhosas, mas na prĂĄtica as pessoas não são atendidas. Eu tenho plano de saĂșde e tenho uma dificuldade imensa de encontrar pessoas especializadas para terapias", disse o presidente do Movimento Orgulho Autista Brasil, Fernando Cotta, em audiĂȘncia pĂșblica na Comissão de Defesa dos Direitos das Pessoas com DeficiĂȘncia da Câmara Federal, em 2021. "No Brasil nós temos algumas ilhas: lugares especĂ­ficos e muito poucos, onde as pessoas são atendidas com respeito pelos órgãos pĂșblicos".

Frente à dificuldade de conseguir no EspĂ­rito Santo a carga horĂĄria semanal de terapias indicadas para as crianças, que em alguns casos pode chegar a 48 horas, as mães e pais do grupo FamĂ­lia TEA firmaram parcerias com prefeituras capixabas e profissionais especializados, visando ampliar o atendimento. "Nossa intenção principal é divulgar informações sobre TEA. Essa é a nossa maior arma para brigar pelos direitos dos nossos filhos", pontua Emanuele.

Hoje, as famĂ­lias integrantes tĂȘm acesso gratuito a 3 horas semanais de terapia funcional especial e aulas de caiaque e natação na praia, além do atendimento psicológico, em grupo, para os pais. "Uma criança dentro do espectro sem tratamento pode chegar a vida adulta com mais dificuldades e dependĂȘncia, por que não se desenvolveu na infância", pontua Gustavo.


O mĂȘs de abril é marcado como o de conscientização do autismo, com dia D no 2 de abril / Marcelo Camargo/Agencia Brasil

Aceitação em primeiro lugar

Receber um diagnóstico de autismo não é simples, porém especialistas concordam que a aceitação da famĂ­lia é o primeiro passo para garantir o desenvolvimento pleno da criança e ajudar a combater preconceito fora de casa.

"Ninguém prepara a gente para ter um filho com deficiĂȘncia. Quando vocĂȘ fica grĂĄvida pensa na cor dos olhos, do cabelo, no quarto, mas não se prepara para uma deficiĂȘncia", pontua PatrĂ­cia. "No caso do autismo é ainda mais difĂ­cil porque trata-se de um transtorno neurológico. O cérebro deles funciona diferente, mas na aparĂȘncia não muda. Quando é algo que não se consegue ver é mais difĂ­cil de lidar. VocĂȘ escuta coisas como: "não parece autista", "tudo é autismo", "isso é frescura".

Olhares de reprovação, perguntas inconvenientes e reações desproporcionais ao comportamento das crianças. A maioria das mães autistas jĂĄ vivenciaram situações como essa em seu dia a dia, como reflexo do preconceito que ainda existe contra as pessoas autistas, em especial as crianças.

"Existe muito preconceito, principalmente de adultos, que perguntam coisas como: "esse menino é assim mesmo?" ou "ele vai bater nas outras crianças!" e nem de longe é assim", conta PatrĂ­cia. "Eu gosto de sair com o Théo, mesmo que ele faça escândalo e grite. Eu não ligo, não tenho vergonha de ter um filho autista, nem tenho vergonha de falar que ele é autista".

Não hĂĄ dados oficiais sobre casos de preconceito contra pessoas autistas no Brasil, porém são recorrentes notĂ­cias sobre casos de bullying e discriminação.

"A falta de adaptação leva a exclusão, a exclusão leva a invisibilidade e a invisibilidade não é mais uma opção para nós. Não vamos aceitar que nos tratem como se não fossemos capazes, porque nós somos", pontua Gustavo. "O laudo muitas vezes anula o respeito. Quando vocĂȘ tem um laudo as pessoas te vĂȘem como se vocĂȘ vivesse em um mundo à parte, mas a gente vive no mesmo muito que vocĂȘs e vamos frequentar parques, cinemas, restaurantes."

Comunicar erro
Jornalista Luciana Pombo

© 2024 Blog da Luciana Pombo é do Grupo Ventura Comunicação & Marketing Digital
Ajude financeiramente a mantermos nosso Portal independente. Doe qualquer quantia por PIX: 42.872.330/0001-17

•   Política de Cookies •   Política de Privacidade    •   Contato   •

Jornalista Luciana Pombo
Acompanhantes GoianiaDeusas Do Luxo