Uma palavra mais ĂĄspera, depois o grito, o tapa, soco, chute, a tentativa de feminicĂdio. A alegação de ser por ciĂșme, a culpa da bebida, a não aceitação da separação, o feminicĂdio. No Brasil, mais de 80% dos crimes de violĂȘncia doméstica contra as mulheres acontece por parceiros e ex-parceiros.
Com o objetivo de criar mecanismos para coibir a violĂȘncia doméstica e familiar, assim como tentar erradicar a violĂȘncia contra a mulher, foi criada em 7 de agosto de 2006, a lei nÂș 11.340, fruto de uma intensa mobilização e da punição do Estado brasileiro. Reconhecida internacionalmente com uma das melhores leis de enfrentamento a violĂȘncia doméstica e familiar, a Lei Maria da Penha, 15 anos após, ainda precisa que seja cumprida efetivamente.
"Vivemos um estado de calamidade em relação à violĂȘncia contra as mulheres, e a pandemia nos colocou em uma situação mais séria ainda. A dificuldade das mulheres saĂrem para fazer as denĂșncias, a precarização do serviço pĂșblico que vem acontecendo, as ações, inclusive de privatizações de serviços pĂșblicos que acabam diminuindo a qualidade dos serviços de apoio e amparo às mulheres, pioram o quadro", destaca a coordenadora do Força-Tarefa Interinstitucional de Combate aos FeminicĂdios, Ariane Leitão.
No Brasil, uma em cada quatro mulheres acima de 16 anos foi vĂtima de algum tipo de violĂȘncia na pandemia. Cerca de 17 milhões de mulheres sofreram violĂȘncia fĂsica, psicológica ou sexual no Ășltimo ano. A cada minuto, oito mulheres apanharam no paĂs, 4,3 milhões (6,3%) foram agredidas fisicamente com tapas, socos ou chutes. O tipo de violĂȘncia mais frequentemente relatado foi a ofensa verbal, como insultos e xingamentos, em que cerca de 13 milhões de brasileiras (18,6%) passaram por este tipo de violĂȘncia. Os dados são da pesquisa do Instituto Datafolha encomendada pelo Fórum Brasileiro de Segurança PĂșblica (FBSP) e divulgada em junho deste ano.
Ainda, conforme aponta o levantamento, os impactos da violĂȘncia repercutem no sustento dessas mulheres. 61,8% das mulheres que sofreram violĂȘncia no Ășltimo ano afirmaram que a renda familiar diminuiu neste perĂodo, jĂĄ as que não sofreram violĂȘncia este percentual foi de 50%; 46,7% das mulheres que sofreram violĂȘncia também perderam o emprego. A média entre as que não sofreram violĂȘncia foi de 29,5%.
"Houve um incremento nos nĂșmeros de feminicĂdios e violĂȘncia doméstica desde o inĂcio da pandemia pela covid19, provavelmente por conta da crise econômica e da necessidade de confinamento. Não se descarta também que o crescimento dos nĂșmeros tenha ocorrido pelo incentivo a denunciar. A maioria das vĂtimas ainda são mulheres negras, pobres e de baixo grau de escolaridade. AtrĂĄs desses nĂșmeros encontra-se a cultura do machismo, as dificuldades no fluxo de atendimento das vĂtimas, o descrédito no sistema de justiça e o receio de denunciar", destaca a defensora pĂșblica e dirigente do NĂșcleo de Defesa da Mulher da Defensoria PĂșblica do Estado do Rio Grande do Sul (NUDEM – DPE/RS), Tatiana Kosby Boeira.
Segundo o AnuĂĄrio Brasileiro de Segurança PĂșblica de 2021, do FBSP, de modo geral os dados da violĂȘncia contra mulheres e crianças tiveram uma leve queda (lesão corporal, estupro, por exemplo), em contrapartida houve um aumento dos feminicĂdios. De acordo com o levantamento, em 2020 o paĂs teve 3.913 homicĂdios de mulheres, dos quais 1.350 foram registrados como feminicĂdios, média de 34,5% do total de assassinatos. "Em nĂșmeros absolutos, 1.350 mulheres foram assassinadas por sua condição de gĂȘnero, ou seja, morreram por ser mulheres", aponta o levantamento. A maioria desses crimes foram cometidos contra mulheres negras.
Para a advogada Renata Jardim, coordenadora de programas da Themis – GĂȘnero, Justiça e Direitos Humanos, hĂĄ um problema sério em relação aos dados de violĂȘncia contra as mulheres. Em sua avaliação não foi possĂvel articular um sistema nacional para que pudesse ter uma ideia mais clara em relação aos nĂșmeros da violĂȘncia e de feminicĂdio. "O que temos mais organizado são os dados do sistema de justiça e do sistema de segurança pĂșblica de delegacias, que são aquelas mulheres que conseguiram fazer a denĂșncia, que ingressaram com o processo e depois os dados da saĂșde, mas eles não dialogam entre si", expõe. Ela frisa que mesmo com os nĂșmeros capturados, eles retratam um quadro muito alarmante, em que hĂĄ um grande percentual de subnotificações. "Precisamos olhar para os nĂșmeros oficiais como uma ponta desse iceberg, eles tĂȘm uma gravidade ainda maior", frisa.
"É uma lei que tem uma importância histórica, social e polĂtica"
"O Estado brasileiro não acordou um dia entendendo que precisava reparar um mal histórico da sua negligĂȘncia em relação a desconsideração da condição das mulheres, o Estado brasileiro foi condenado na organização de estados Americanos por conta da denĂșncia relativa ao caso da Maria da Penha Fernandes, sendo que outros, muitos outros casos de mulheres também jĂĄ tinham sido denunciados, jĂĄ haviam sido denunciados naquela corte internacional", contextualiza a psicóloga e presidenta da Comissão de Direitos Humanos do Conselho Regional de Psicologia do Rio Grande do Sul, Cristina Schwarz.
Conforme destaca Cristina, é uma lei que criou um fato social, que inaugura um campo de discussão que estava distante da sociedade. "Não é à toa que muitas pesquisas mostram que a Lei Maria da Penha é a lei mais conhecida no Brasil. Ainda que as pessoas possam não conhecer exatamente os termos dela, as pessoas sabem que se trata de uma lei de violĂȘncia contra as mulheres, e entendem a partir daĂ então que a violĂȘncia contra as mulheres é um crime. Isso possibilita o debate sobre a condição de violĂȘncia que as mulheres vivenciam", comenta.
A cientista social, especialista em polĂticas pĂșblicas de enfrentamento à violĂȘncia contras as mulheres, diretora da Secretaria de PolĂticas para Mulheres e coordenadora do Ligue 180, entre 2003 e 2016, Ane Cruz, reforça que a lei só existe por esforços do movimento feminista que foi o maior protagonista nesta conquista. "Nunca antes uma legislação teve este feito. A lei é muito completa, pois trouxe responsabilidades para todas as esferas pĂșblicas e para a sociedade civil. Ou seja, todos os entes federados tĂȘm atribuições na lei", afirma.
Entre os avanços que a lei trouxe para a defesa das mulheres, a cientista social destaca a tipificação e definição de violĂȘncia doméstica e familiar contra a mulher, estabelecendo as formas de violĂȘncia doméstica como a violĂȘncia fĂsica, psicológica, sexual, patrimonial e moral; de que a violĂȘncia doméstica contra a mulher independe de orientação sexual; a proibição de penas pecuniĂĄrias (antes da lei, por exemplo, o agressor podia responder ao crime pagando uma cesta bĂĄsica), entre outros.
"Todos esses avanços só são possĂveis ou reais, se todos os setores envolvidos cumprirem com suas partes. Principalmente se a sociedade denunciar os casos de violĂȘncia contra as mulheres e se o Poder JudiciĂĄrio julgar e punir com rigor estes casos", ressalva Ane.
Na avaliação da cientista social, ao ser indagada por que a situação continua sendo tão grave, estĂĄ a cultura machista em que estamos inseridos. "Uma cultura em que a sociedade banaliza e normatiza a violĂȘncia contra as mulheres. Uma cultura machista ainda imposta nas academias que formam advogados e advogadas, futuros juĂzes e juĂzas, com cabeças retrógradas. Uma cultura machista institucional, dentro dos poderes, Legislativo, Executivo e JudiciĂĄrio. Uma cultura machista na mĂdia que ainda permite que mĂșsicas misóginas sejam veiculadas e assim por diante. HĂĄ muito que ser feito no âmbito do enfrentamento da cultura machista que permeia nossa sociedade", contextualiza
Dificuldade de implementação da lei e desinvestimento
Apesar dos avanços como a expedição da medida protetiva, a coordenadora da Força-Tarefa Interinstitucional de Combate aos FeminicĂdios, Ariane Leitão, enfatiza que ainda hĂĄ uma grande dificuldade na implementação da lei 15 anos depois. "Temos um Estado estruturado a partir da perspectiva patriarcal, machista e inclusive misógina, e as nossas instituições repercutem, reproduzem esses preconceitos e essas violĂȘncias. Nesse momento tanto a mulher como seus dependentes jĂĄ podem ter sido vĂtimas de crimes fatais como é o caso de feminicĂdio. Existem casos ainda do JudiciĂĄrio, da própria polĂcia exigir a apresentação de testemunhas para dar certeza da existĂȘncia dessa violĂȘncia, quando em muitas vezes, quase a maioria absoluta dos casos a violĂȘncia ocorre dentro de casa sem testemunhas. Se a gente for analisar friamente a letra fria da lei nós ainda estamos em uma situação extremamente grave de descumprimento dessa legislação, essa é a realidade desses 15 anos da lei, uma realidade muito pior do que jĂĄ tivemos", expõe.
Conforme complementa Cristina Schwarz, ainda se vivencia um cenĂĄrio em que as mulheres chegam às delegacias e são questionadas sobre a legitimidade dos seus pleitos. "Elas são julgadas, desmerecidas, e muitas vezes saem de uma delegacia com a ideia, com a confirmação de que elas não tĂȘm direitos, e isso é muito grave, porque isso é uma violĂȘncia institucional. Vivenciamos um cenĂĄrio de consolidação parcial dessas estruturas previstas pela lei, mas com uma lógica de funcionamento dentro dessas estruturas ainda muito opressora às mulheres, e muito pouco sensĂvel a esse fenômeno da violĂȘncia que elas sofrem", pontua.
Tanto Cristina quanto Ariane chamam atenção para o desfinanciamento que as polĂticas pĂșblicas de combate à violĂȘncia contra a mulher vĂȘm sofrendo nos Ășltimos anos, em especial sob o governo de Jair Bolsonaro. HĂĄ, de acordo com elas, após a aprovação da lei, mais especificamente entre os anos 2011 a 2015, um incremento, por meio da constituição da Secretaria Especial de PolĂticas para as Mulheres, para a criação das polĂticas pĂșblicas. Após o golpe que tirou Dilma Rousseff da presidĂȘncia, aponta Ariane, hĂĄ o desmantelamento dessas polĂticas.
"Temos agora um governo genocida que tem mirado na vida das mulheres, na dignidade das mulheres. Este ano tivemos o parco recurso para polĂtica para mulheres em nĂvel nacional, com somente 23% do recurso aplicado", afirma a coordenadora.
Para Renata Jardim, o desafio maior no momento é a implementação daquilo tudo que foi previsto na lei. Segundo avalia a advogada, tem se observado propostas legislativas com um recorte mais punitivista da lei. "Seu eixo central não é a punição, mas a garantia de polĂticas, serviços e ações voltados para prevenção, atenção humanizada às mulheres em situação de violĂȘncia, responsabilização e garantia de direitos. Não podemos mais acreditar ou propagar que o recrudescimento de penas, em alterações legislativas centradas na criação de novos tipos penais, seja a resposta que as mulheres precisam. Para erradicar e enfrentar a violĂȘncia é preciso um conjunto articulado de serviços e polĂticas, que garantam uma resposta imediata quando a violĂȘncia acontecesse, que atue na raiz cultural que banaliza e legitima condutas que violentam as mulheres."
Para a defensora pĂșblica do estado, Tatiana Kosby Boeira, os nĂșmeros da violĂȘncia contra as mulheres comprovam que apenas o acirramento da punição não basta. "Não basta elevar penas, sem polĂticas de conscientização e educação. Também se faz necessĂĄria a implementação de polĂticas pĂșblicas que promovam o acolhimento e o tratamento psicológico das mulheres vĂtimas de violĂȘncia, bem como um olhar para o agressor, buscando reabilitĂĄ-lo", expõe.
"O ciclo de violĂȘncia somente serĂĄ rompido com o acesso à educação e com o implemento de meios que possibilitem que as mulheres, vĂtimas de quaisquer tipo de violĂȘncia, possam vir a refazer suas vidas, com acesso ao mercado de trabalho, condição de criar seus filhos e atendimento psicológico para vencer os traumas", conclui.
"Celebramos os 15 anos da lei no sentido de reforçar a importância desse instrumento, mas com grande preocupação e com alerta no sentido de que é preciso investir na pauta das mulheres. Romper com essa ideia de que as estratégias punitivistas vão garantir alguma mudança nesse cenĂĄrio. Temos que trabalhar com ações de médio e longo prazo. Precisamos mudar a nossa cultura, criar serviços, garantir acesso aos mesmos e qualificĂĄ-los. Precisamos conversar, dialogar e colocar isso no centro do debate da nossa sociedade", finaliza Renata.
Para a cientista polĂtica Ane Cruz, além da pandemia, temos que enfrentar uma endemia no Brasil que é a violĂȘncia contra as mulheres e os feminicĂdios. "Esta endemia só terĂĄ cura, se tratarmos de enfrentar o machismo à altura, com educação não sexista nas escolas, por uma cultura não violenta e não misógina, punição severa e reeducação dos agressores."
Na avaliação de Cristina, para ocorrer o rompimento da violĂȘncia contra as mulheres é essencial que haja ofertas de acolhida, de serviços de oportunidades para que essa mulher seja capaz de vislumbrar condições de materializar esse rompimento.
Como aponta o AnuĂĄrio Brasileiro da Segurança PĂșblica de 2021, entre as vĂtimas de feminicĂdio no Ășltimo ano, 61,8% eram negras/ Foto: Giorgia Prates
Algumas leis tĂȘm surgido nesse sentido, como a aprovada na Assembleia gaĂșcha no dia 10 de julho, que prevĂȘ o abrigamento para mulheres e crianças vĂtimas de violĂȘncia, ainda sem sanção do governador Eduardo Leite. Ou a Lei 14.022/2020, que completou um ano e que prevĂȘ a intensificação da Lei Maria da Penha na pandemia e estende seus efeitos para crianças e adolescentes, idosos e pessoas com deficiĂȘncia.
"Todas as ações legislativas que vĂȘm surgindo são muito importantes, mas infelizmente elas param nos poderes Executivo e JudiciĂĄrio, que são poderes calcados nessa estrutura extremamente machista, misógina, patriarcal, racista. São as mulheres que mais morrem no Brasil, são as crianças negras que estão ficando mais vĂtimas do feminicĂdio, da pandemia, são as mulheres negras que mais sofrem violĂȘncia, são elas que mais sofrem com a não atuação dos governos", finaliza Ariane.