Geral flavia azevedo

Quando a polícia prova do próprio veneno

Por Da Redação

01/10/2022 às 11:17:34 - Atualizado há

Nesta semana, a PM arrombou um quarto, entrou atirando e matou um homem que, de acordo com o colega (também baleado) estava dormindo. O que foi assassinado não teve tempo de explicar que era trabalhador. O outro, que foi gravemente ferido, gritava que não era bandido, mas não adiantou nada. Foi tiro pra todo lado, fratura exposta, hospitalização e quase morte também. Nada novo sob o céu da Bahia, a não ser o fato de que todos eram policiais militares: vítimas e atiradores. Ora ora, vejam só.

O jogo é de muito mais do que sete erros e o primeiro já está no parágrafo acima. Você percebeu ou engoliu sem nem sentir? Rebobine aí. Leia de novo, se quiser, e conclua que o esforço do policial ferido em dizer "não sou bandido", durante o ataque, na tentativa de um cessar-fogo, é a prova mais explícita do que todos sabemos: há pena de morte instituída no Brasil. Para bandidos. Ou para os que "parecem ser" bandidos (na opinião de quem?), por específicas e conhecidas interseccionalidades.

Seja você a favor ou contra a pena capital, a honestidade exige que se admita a existência da prática neste país. O que não há, por aqui, é o processo que a antecede em territórios nos quais o assassinato pelo Estado é utilizado, legalmente, como instrumento de punição e controle social. A pena de morte à brasileira é no "achômetro" mesmo. O policial foi morto por outro policial porque o que matou "achou" que estava diante de um bandido. Aí, se fosse mesmo bandido, o assassino estaria "certo", ainda que que a vítima estivesse deitada, desarmada, dormindo.

A não ser pela família pedindo justiça nos veículos de imprensa e dois ou três cartazes levantados na comunidade de origem da vítima, não haveria comoção diante de um bandido (ou de alguém que parecesse ser bandido) morto. Mesmo deitado, desarmado, dormindo. Por quê? Porque existe pena de morte no Brasil e porque todo mundo já se acostumou com os "acidentes de percurso".

Estamos carecas de saber dos "casos isolados" nos quais uma abordagem policial acaba resultando na morte de alguém que podia até não ser bandido, mas estava "no lugar errado e na hora errada". Isso que, como sabemos, muitas vezes, significa apenas existir como homem, preto e periférico. Quase nos dizem "a vida é assim". Você há de concordar que esses são fatos incontestáveis em qualquer diálogo, sobre o tema, que não envolva o cinismo mais brutal.

(Esse é o primeiro ponto. Fixou? Vamos ao segundo, então.)

Quando começam a questionar os motivos pelos quais "bandidos" abordados pela polícia são mortos, nunca se diz “porque é assim”. A resposta comum é algo do tipo "o elemento reagiu", "houve troca de tiros" e afins. O que, muitas vezes, é verdade, claro. Outras, não. Aí, sempre fico pensando sobre como tratar as autoridades policiais, em eventuais abordagens. Não sou bandida, armada não ando, tenho educação e até aqui, a sorte (e minha interseccionalidade) tem me ajudado. Mas não há jeito certo, um protocolo de comportamento que garanta nada.

Abaixar a cabeça, chamar de "senhor", não levantar a voz, apresentar documentos, dizer de onde vem e pra onde vai. Nem a encenação da submissão mais absoluta parece salvar de quem vem com "sangue nos olhos" do lado de lá. Digo isso porque se houvesse a possibilidade de uma comunicação "correta", o segundo policial, também alvo dos colegas de farda, não estaria todo ferido no hospital. Ele repetiu que é policial e pediu clemência ao "capitão". Ele gritava “eu vou morrer” e pedia socorro. Não comoveu ninguém, naquela noite.

O primeiro nem teve chance de tentar, já que, de acordo com o colega que gravou vídeo dando a própria versão dos fatos, foi mesmo morto enquanto dormia. Mas, o que sobrou para contar a história, teve tempo e, certamente, domina a linguagem dos quartéis. Patentes, “safewords”, tratamentos e gírias deles lá. Adiantou? Não. Nem um pouco. O homem foi destroçado física e psicologicamente por pessoas com as quais divide a profissão e, portanto, toda uma gramática.

Daqui de fora, fico pensando em como uma mãe deve instruir um filho a se comportar em situação parecida. Qual o "comportamento" adequado para qualquer cidadão, diante da abordagem policial? Qual é o procedimento seguro? Como garantir que os policiais não se sintam ameaçados e "reajam" com tiros? O que pode ser menos ameaçador do que estar deitado, desarmado, dormindo, como estavam as vítimas desse caso? As respostas estão por conta de Dirceu: nem tu sabe, nem eles, nem eu.

Outra coisa curiosa, venha ver. Não tem um monte de gente que garante ser importante que "cidadãos de bem" - mesmo sem treinamento - possam usar armas para se defender? Que isso “salva vidas”? Pois, policiais andam armados. As duas vítimas eram policiais, portanto tinham armas. Que não empunhavam, já que ambos estavam deitados para dormir. Como sabemos, ninguém fica em pé o dia todo, com a mão no cabo do revólver. Os policiais vítimas foram tomados de assalto pelos outros policiais. As armas das vítimas não serviram para nada. Mesmo na posse de dois homens treinados. Ter arma resolve o quê, gente? Mais um erro no jogo. Elementar.

Cansou? Porque tem muito mais coisas a se pensar quando a polícia prova do próprio veneno. Ninguém precisa me dizer que "nem todo policial é ruim" porque eu não sou maluca e sei disso. Mas, também, não dá pra fazer de conta que tá tudo bem com essa instituição. Esse assassinato foi um resultado. Há uma série de questões, inclusive psiquiátricas, que precisam ser tratadas. Um emaranhado de fios desencapados que vão desde a precariedade de remuneração e condições de trabalho até explícitos equívocos no treinamento de profissionais. "Que deus conforte a família do subtenente Alberto Alves dos Santos" é pouco. Precisamos salvar a polícia dela mesma, pra começo de conversa. Que essa morte assombre, por muito tempo, a quem deve assombrar.

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