O conflito institucional fomentado pelo presidente Jair Bolsonaro trouxe à superfĂcie uma novidade ofuscada pela polarização polĂtica: apesar das sucessivas tentativas de interferĂȘncia, a PolĂcia Federal consolidou a independĂȘncia, com a chancela judicial, para tocar investigações e operações contra extremistas de direita que querem forçar medidas de exceção contra o regime democrĂĄtico a partir de atos programados junto com as comemorações da IndependĂȘncia.
As anĂĄlises de inteligĂȘncia da PF apontam que BrasĂlia e São Paulo serão palcos de grandes manifestações polĂticas, com riscos de distĂșrbios pontuais que podem evoluir nos dias pós-feriado, para novas agressões ao Supremo Tribunal Federal (STF) e transformação da retórica beligerante numa escalada de violĂȘncia.
O cenĂĄrio vem sendo acompanhado pelo Centro de InteligĂȘncia do Exército (Ciex), pela AgĂȘncia Brasileira de InteligĂȘncia (Abin) e, em especial, pela Diretoria de InteligĂȘncia da PolĂcia Federal, que, como polĂcia judiciĂĄria, terĂĄ o papel mais importante na contenção de eventuais excessos. As anĂĄlises da PF, às quais a AgĂȘncia PĂșblica teve acesso, traçam um cenĂĄrio radicalizado e imprevisĂvel, com uma linha tĂȘnue separando grupos de direita e esquerda, onde o risco maior estaria num eventual encontro entre manifestantes nas ruas no feriado de 7 de setembro.
A PF acompanha com discrição os movimentos e, caso os riscos de confronto aumentem, avalia a possibilidade de adotar medidas preventivas. Entre elas, a solicitação de bloqueio de rodovias e pedidos de prisões temporĂĄrias de dirigentes de entidades ou até parlamentares que eventualmente sejam flagrados financiando ou fazendo apologia a atos de violĂȘncia contra STF e Congresso, alvos dos bolsonaristas.
A ĂĄrea de inteligĂȘncia da PF monitora dezenas de lĂderes e entidades de classe que se articulam pelas redes sociais, a maioria ligada a caminhoneiros, produtores rurais, evangélicos, policiais militares e civis. O foco, no entanto, são milĂcias e grupos bolsonaristas radicais, de perfil paramilitar, como o "300 do Brasil" cujos integrantes, acampados na Esplanada do Ministério em BrasĂlia, em junho do ano passado lançaram fogos de artifĂcios contra o prédio do STF, numa provocação que pode ser repetida agora. Embora esteja sendo investigado e sua lĂder, Sara Winter, tenha sido presa à época, os militantes são considerados extremistas sensĂveis aos discursos de ódio contra as instituições, estimulados pelo presidente e seus apoiadores mais próximos. A PF investiga ainda suspeitas de que as mobilizações para 7 de setembro estejam sendo financiadas por empresĂĄrios e polĂticos aliados ao governo.
Embora vinculada administrativamente ao governo através do Ministério da Justiça, as investigações da PF estão sendo controladas exclusivamente pelo STF, que não permite interferĂȘncias e tem dado aos policiais todas as garantias para agir livremente ou pedir as providĂȘncias judiciais adequadas a cada circunstância. Um exemplo disso foram os pedidos de prisão feitos pela PF contra apoiadores ou polĂticos ligados ao presidente, como nos casos do deputado federal Daniel Silveira (PSL-RJ) e do presidente do PTB, Roberto Jefferson. O nĂșcleo que cuida da inteligĂȘncia e operações se reporta exclusivamente aos ministros do STF, especialmente a Alexandre de Moraes, responsĂĄvel pelos principais inquéritos que cercam o clã Bolsonaro.
Ao mandar prender lideranças de direita que tinham canal direto com Bolsonaro, o STF se orientou por investigações da PF e avisou que mandato parlamentar ou a proximidade com o presidente não é salvo-conduto para ações à margem da lei ou que agridam o regime democrĂĄtico. No relatório em que embasou o pedido de prisão de Roberto Jefferson, a PF alegou que que ele não só passou dos limites ao pregar invasões ao STF e à CPI da Covid, como vinha incitando seguidores com sucessivas declarações que, segundo escreveu um delegado, "podem culminar na efetiva execução de atos de violĂȘncia". Com a proximidade do 7 de setembro, o STF negou os pedidos de libertação de Jefferson e de conversão da preventiva para prisão domiciliar, um indĂcio de que medidas semelhantes estão no radar das autoridades.
As investigações miram também os filhos de Bolsonaro, o senador FlĂĄvio Bolsonaro (Patriotas-RJ), o deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) e o vereador Carlos Bolsonaro (Republicanos), aos quais são ligados os militantes de direita que jĂĄ passaram pelas prisões e são monitorados. O cerco à famĂlia do presidente é um indicativo de que, embora tenha derrubado o ex-ministro da Justiça, Sérgio Moro, e feito sucessivas trocas na direção e superintendĂȘncias, para interferir nas investigações, o presidente perdeu o controle que pretendia exercer na PolĂcia Federal. Livre das pressões, o nĂșcleo da PF que investiga os grupos antidemocrĂĄticos é agora um obstĂĄculo às ideias autoritĂĄrias que o presidente pretende por em prĂĄtica caso receba apoio significativo dos grupos de direita neste 7 de setembro.
"A PF estĂĄ cumprindo seu papel. Faz investigação judicial com o crivo do Ministério PĂșblico Federal", diz o presidente da Federação Nacional dos Policiais Federais (Fenapef), Luiz Antônio Boudens. Segundo ele, o atual diretor geral Paulo Maiurino, o quarto nomeado no governo Bolsonaro, tem feito uma gestão com diĂĄlogo para evitar que a PF seja envolvida em questões ideológicas e partidĂĄrias. Uma fonte da PF disse à AgĂȘncia PĂșblica que embora a escolha de Maiurino, em abril deste ano, tenha sido do ministro da Justiça, Anderson Torres, que a submeteu ao presidente, o que mais pesou na indicação foi uma discreta articulação de bastidor exercida pela cĂșpula do STF, onde o delegado havia sido secretĂĄrio de segurança. A manobra ajudou a blindar a PF de interferĂȘncias em investigações que agora estão no calcanhar de personagens próximas ao presidente.
A independĂȘncia da PF para atuar nas investigações judiciais tem incomodado o governo e aliados. Na terça-feira, o relator da reforma administrativa, deputado Arthur Maia (DEM-BA), num gesto surpreendente, decidiu incluir na proposta de reforma administrativa enviada pelo governo à Câmara, um dispositivo que proibiria o STF de escolher delegados que devem conduzir inquéritos abertos pela Corte, uma prĂĄtica que ficou evidente na atuação do ministro Alexandre de Moraes. Nas investigações contra bolsonaristas, o ministro vetou a participação de agentes e delegados tidos como apoiadores do presidente e abriu caminho para a criação de um nĂșcleo de inteligĂȘncia e operações independente, formado por policiais sem vĂnculos ideológicos ou partidĂĄrios. A alteração de Maia, conhecida na gĂria legislativa como jabuti, por ser alheia à proposta original, cria foro privilegiado ao diretor da PF e dĂĄ a ele total controle na escolha de quem vai tocar as investigações. É provĂĄvel que seja derrubada no plenĂĄrio da Câmara porque interferiria na prerrogativa do judiciĂĄrio e do Ministério PĂșblico Federal, que são responsĂĄveis pelas ações penais decorrentes de inquéritos.
Entre policiais da ativa e representantes das entidades sindicais da PF ouvidos pela PĂșblica não hĂĄ dĂșvidas de que se conseguir um forte apoio nos atos programados no 7 de setembro em BrasĂlia e São Paulo, o day after da IndependĂȘncia serĂĄ marcado por intensa pressão de Bolsonaro na busca de apoio das Forças Armadas a medidas de exceção para limitar os poderes do STF e Congresso.
Por esse raciocĂnio, Bolsonaro pode contar com corporações estaduais simpatizantes, especialmente das PMs, mas não tem apoio de órgãos federais, o que justifica a insistĂȘncia com que tenta arrastar os militares para seu sonho golpista. "Ele quer usar o 7 de setembro como demonstração de força para decretar alguma medida de exceção. Pode ser estado de sĂtio ou estado de defesa", diz um integrante da Fenapef, que não quer se identificar. Segundo ele, a crise gerada por Bolsonaro é artificial e sem qualquer fato que justifique intervenção.
Militar da reserva do Exército, o cabo Marcelo Machado, presidente da Associação Nacional dos Militares do Brasil (ANMB), entidade com 50 mil filiados, acha que um eventual apoio de setores militares às ideias golpistas provocaria um racha sem precedentes nas Forças Armadas, puxado pelas baixas patentes, que representam mais de 95% de todo o contingente. "Quem apoia as sandices do Bolsonaro são as polĂcias e parte do Alto Comando militar. Ele perde cada vez mais o apoio das praças. Não vejo possibilidade de golpe, mas se houver, qualquer tentativa seria sufocada rapidinho. O que ele quer é gerar uma confusão, um caos que justifique uma ação militar. Mas isso não vai acontecer. Quem defende essas coisas são malucos, fanĂĄticos, os devotos de Bolsonaro, um pessoal que não pensa", diz Machado.
A Federação Nacional dos Policiais Federais (Fenapef), que representa 14.100 filiados, estima que, embora tenha perdido o apoio de metade dos policiais que votaram nele, uma parte significativa dos aposentados estĂĄ se deslocando a BrasĂlia para se manifestar a favor de Bolsonaro. Boudens acha que as redes sociais mostram um nĂvel jamais visto de ataques e agressões, gerando um ambiente propĂcio a conflitos e forte expectativa de medidas intervencionistas pelo governo. "O cenĂĄrio atual é de risco. Pode haver violĂȘncia. No momento seguinte ao 7 de setembro, o presidente deve tomar alguma atitude, mas não sabemos o que pode acontecer. Acho que hĂĄ uma probabilidade de Bolsonaro obter algum apoio militar, mas não sei se o paĂs estĂĄ pronto para os abalos que estão por vir", afirma o presidente da Fenapef.
Boudens avalia que a crise tornou o ambiente polĂtico do paĂs suscetĂvel à ação de grupos radicais que pressionam o governo a adotar medidas extremas. "Se Bolsonaro receber apoio forte nas manifestações e não tomar atitudes, ficarĂĄ um vazio entre os radicais que apoiam intervenção. A oposição também vai se organizar", diz ele, se referindo ao provĂĄvel acirramento dos ânimos a partir do feriado.
Ao transformar as comemorações pela IndependĂȘncia numa espécie de "Dia D", como se estivesse apostando no tudo ou nada numa guerra imaginĂĄria, o presidente selou o próprio destino, no qual, segundo sua própria avaliação, hĂĄ espaço tanto para um desfecho trĂĄgico quanto festivo. "Eu tenho trĂȘs alternativas para o meu futuro: estar preso, estar morto ou a vitória. Pode ter certeza que a primeira alternativa não existe", disse Bolsonaro durante encontro com evangélicos, na semana passada, em Goiânia.
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