A AgĂȘncia Brasil visitou uma dessas ocupações que abriga hoje cerca de 48 famĂlias, com mais de 120 pessoas. Fica no centro histórico, em um prĂ©dio abandonado hĂĄ mais de dez anos, onde era o antigo Hotel Arvoredo, apelidada de Ocupação Desalojados pela Enchente Rio Mais Grande do Sul.
Diferentemente das outras trĂȘs ocupações que ocorreram nos Ășltimos dias, essa não foi liderada por um movimento social organizado, mas por famĂlias que, sem querer ficar em abrigos, procuraram outra saĂda para a falta de moradia e entraram no prĂ©dio no Ășltimo dia 24 de maio.A faxineira Liziane Pacheco Dutra, de 37 anos, foi viver com o marido, a filha e o enteado, alĂ©m do pai, da mãe e do sogro, nessa ocupação depois que a casa deles, no bairro Rio Branco, ficou com ĂĄgua atĂ© o telhado.
"Aqui em Porto Alegre tem vĂĄrios prĂ©dios ociosos, sem utilidade social nenhuma. O presidente falou que ou ia construir casas, ou comprar casas em leilão. Então, por que não aproveita todos esses prĂ©dios que estão ociosos, compra, reforma e dĂĄ pra população que perdeu tudo? Não adianta reformar minha casa. Se eu voltar pra lĂĄ, a primeira chuva forte que der, enche tudo", afirmou.
As novas ocupações são sintomas do agravamento da falta de moradia na capital gaĂșcha. Segundo pesquisa da Fundação João Pinheiro, em 2019 existia um dĂ©ficit habitacional de mais de 87 mil habitações em Porto Alegre, situação que piorou com as enchentes que desalojaram, em todo o estado, mais de 388 mil pessoas, de acordo com o Ășltimo boletim da Defesa Civil.
Carlos Eduardo Marques, integrante da ocupação O Rio Mais Grande do Sul. Foto: Bruno Peres/AgĂȘncia BrasilO pedreiro e tĂ©cnico de celulares Carlos Eduardo Marques, de 43 anos, vive com os quatro filhos e a esposa na ocupação. Ele conta que a famĂlia perdeu tudo no bairro Sarandi e, sem ter para onde ir, resolveu conversar com outras famĂlias insatisfeitas nos abrigos para entrar no prĂ©dio abandonado.
"Quando as pessoas começaram a perder tudo e ir para abrigos foi que começou uma explosão. Elas não queriam ir para os abrigos. Eu falei com a minha mãe, com as minhas irmãs, elas conheciam uma famĂlia que não estava sendo bem acolhida nesses locais e que aceitou fazer a ocupação. E a gente entrou. Então, nós estamos lutando e acolhendo famĂlias", explicou.
Carlos disse que a empresa dona do prĂ©dio entrou contra eles na Justiça e que receberam um ultimato de 60 dias para sair, que termina em 12 de agosto. As famĂlias com quem a AgĂȘncia Brasil conversou não querem ir para as cidades temporĂĄrias ou abrigos.
"Bah, tĂĄ louco! Pegam a gente e botam num abrigo, ou botam na cidade temporĂĄria. E depois? Daqui a pouco todo mundo esqueceu de nós. Vamos lutar por uma coisa digna para nós", comentou.
Outras ocupações
Antes dessa ocupação, houve outra em antigo prĂ©dio abandonado da prefeitura de Porto Alegre, tambĂ©m no centro da cidade, onde funcionava uma companhia de arte. O Movimento Nacional de Luta pela Moradia (MNLM) entrou no edifĂcio no dia 31 de maio para abrigar famĂlias atingidas pela enchente.
Eles estão em processo de negociação com a prefeitura e apresentaram proposta para que o prĂ©dio seja usado para moradia popular, alĂ©m de manter um teatro como espaço cultural e uma cozinha solidĂĄria.
Outra ação, feita no dia 8 de junho, foi liderada pelo Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) e chamada ocupação Maria da Conceição Tavares, em homenagem à economista que morreu no mesmo dia.
FamĂlias afetadas pelas chuvas estão vivendo em antigo prĂ©dio do INSS, no centro de Porto Alegre, que era usado apenas como depósito pelo órgão. Nesse caso, hĂĄ um processo de negociação com o governo federal e o próprio INSS para encontrar uma solução de moradia para as famĂlias nesse prĂ©dio ou em outro local.
Reintegração
Situação oposta ocorreu com a ocupação Sarah Domingues, no Ășltimo domingo, que foi imediatamente desocupada por uma reintegração de posse comandada pela PolĂcia Militar gaĂșcha. FamĂlias lideradas pelo Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas (MLB) ocuparam por algumas horas um prĂ©dio de propriedade do governo do estado abandonado hĂĄ anos.
Luciano Schafer durante conversa com integrantes do Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas. Foto: Bruno Peres/AgĂȘncia BrasilUma das lideranças do movimento, Luciano Schafer, acusa o governo estadual de promover a reintegração sem decisão judicial e de impedir o acesso dos advogados do grupo. "Foi uma ação ilegal e terrorista do governo de Eduardo Leite para colocar medo na população e impedir que novas ocupações ocorram", denunciou.
A AgĂȘncia Brasil entrou em contato com a assessoria de imprensa do estado para comentar o caso, mas não obteve retorno.
A coordenadora do MLB, Tâmisa Fleck, contou que a ação foi realizada por cerca de 200 pessoas desalojadas pelas enchentes em diferentes pontos da capital. Segundo ela, as fortes chuvas impulsionaram o movimento por moradia.
"Entramos num momento em que não tinha como não fazer uma ocupação. Então, nos organizamos. Fizemos reuniões em bairros, porque a gente trabalha de bairro em bairro, conversa com as pessoas, se reĂșne. Foram vĂĄrias etapas atĂ© resolvermos de forma coletiva fazer a ocupação", contou.
Após a reintegração, o grupo fez uma plenĂĄria nessa terça-feira (18) para discutir os próximos passos. Eles prometem denunciar a ação do governo do estado na Assembleia Legislativa nesta quarta-feira (19) e promover uma reunião na Secretaria de Habitação na próxima segunda-feira (24), para discutir saĂdas para as famĂlias desalojadas pelas chuvas.
DĂ©ficit habitacional
EdifĂcio no Centro Histórico onde vivem famĂlias de ocupações do MTST. Foto: Bruno Peres/AgĂȘncia BrasilO pesquisador do Observatório das Metrópoles, AndrĂ© Augustin, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (RS), destacou que a polĂtica habitacional da região metropolitana de Porto Alegre não tem apresentado soluções de moradias populares.
"De 2010 a 2022, quase dobrou o nĂșmero de domicĂlios vagos em Porto Alegre. HĂĄ uma polĂtica de incentivo à construção de novos prĂ©dios, mas Ă© para o mercado, voltado principalmente para a população de alta renda. Por outro lado, houve o abandono da polĂtica de habitação de interesse social. Ă uma polĂtica que tem que ser mudada, e agora a enchente mostrou isso de forma mais acentuada".
De acordo com o Censo do IBGE de 2022, existem mais de 223 mil domicĂlios não ocupados em toda a região metropolitana da capital. Para Augustin, o uso dos imóveis pĂșblicos abandonados Ă© uma solução de curto prazo para essa população.
"Tanto as prefeituras quanto o governo do estado e o governo federal tĂȘm muitos imóveis que não estão sendo usados. Eles estão mapeados, jĂĄ são pĂșblicos, não precisariam passar por um processo de desapropriação. No curto prazo, a melhor polĂtica seria usar esses imóveis que são pĂșblicos. Mas, no mĂ©dio e longo prazo, Ă© preciso repensar toda a polĂtica habitacional e se voltar mais para a habitação social", completou.
Ações governamentais
Liziane Pacheco Dutra, integrante da ocupação O Rio Mais Grande do Sul. Foto: Bruno Peres/AgĂȘncia BrasilNessa terça-feira (18), o governo federal editou medida provisória (MP), com R$ 2,18 bilhões, para moradia popular dos atingidos pelas enchentes. Ao todo, espera-se alcançar com esses recursos 12 mil moradias, sendo 10 mil urbanas (com valor mĂ©dio de R$ 200 mil) e 2 mil rurais (com valor mĂ©dio de R$ 90 mil).
TambĂ©m ontem começou a construção dos centros humanitĂĄrios de Acolhimento em Canoas (RS) e Porto Alegre (RS), uma parceria dos governos federal, estadual, municipais e a AgĂȘncia da Organização das Nações Unidas para Refugiados (Acnur).
O órgão cedeu 208 estruturas com capacidade para receber cerca de 700 pessoas desabrigadas pelas enchentes em Canoas. Mais mil pessoas devem ser acomodadas nessas estruturas temporĂĄrias em Porto Alegre.
AgĂȘncia Brasil