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Punição contra agentes de Estado é recomendação jamais realizada da Comissão da Verdade

"Toda a nossa tortura era feita [com] nós nuas, as mulheres nuas.

Por Da Redação

04/04/2024 às 19:09:42 - Atualizado há

"Toda a nossa tortura era feita [com] nós nuas, as mulheres nuas. Os homens também ficavam nus. Com vários homens dentro da sala e levando choques pelo corpo todo, inclusive, na vagina, no ânus, nos mamilos, na boca, nos ouvidos..."

O depoimento foi durante a Comissão Nacional da Verdade (CNV), em 2013, pela jornalista, escritora e ex-presa política Maria Amélia Teles, mais conhecida como Amelinha. A lei que criou esta comissão foi sancionada pela então presidenta Dilma Rousseff, outra vítima de torturas por combater a ditadura.

Quase três décadas depois da ditadura militar no Brasil, a comissão buscou apurar as graves violações de direitos humanos no período e contribuir para que o passado histórico não seja repetido.

Reportagem especial da série Futuro Interrompido: 60 anos do golpe no Brasil mostra a importância da CNV, ainda que após muito tempo do regime, e aponta como a ausência de punição para criminosos da ditadura, por causa da Lei de Anistia, influencia a política brasileira atual.

A CNV foi instalada oficialmente em 2012 e teve duração de quase três anos. Foram diversas audiências públicas, com depoimentos de vítimas e agentes, até o relatório final, entregue em dezembro de 2014.

A comissão reconheceu detenções ilegais e arbitrárias, tortura, violência sexual, execuções e outras violências praticadas como política de estado do regime militar. Os casos foram considerados crimes contra a humanidade.

"A Comissão da Verdade mexeu com essas estruturas latentes que estavam por muito tempo abafadas. Trouxe à tona questões em relação ao nosso processo de transição e a responsabilização do Estado em relação ao período autoritário. O nosso processo de transição não foi feito nesse sentido da responsabilização, porque foi um processo controlado dentro do próprio governo militar", explica a cientista política e pesquisadora Lilian Sendretti, do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap).

"A Dilma foi a única governante, presidente, que olhou para essa questão da ditadura e buscou colocar isso na esfera pública através da Comissão da Verdade", pontua Sendretti.


Presidenta Dilma Rousseff se emocionou ao receber relatório final da comissão, em 2014 / Antonio Cruz/Agência Brasil

Conclusões da CNV

O documento final da Comissão da Verdade faz 29 recomendações às autoridades nacionais. Entre elas, o reconhecimento de culpa por parte das Forças Armadas, a indenização das vítimas custeada por acusados pelos abusos, a proibição de atos em comemoração ao golpe militar de 64, a criação de mecanismos de prevenção e combate à tortura e mudanças nos registros de óbitos das vítimas.

O relatório não deixa dúvidas quanto ao assassinato do jornalista Vladimir Herzog por agentes do estado, derrubando a falsa versão de suicídio que havia sido montada. O nome de Herzog está na lista de 434 pessoas mortas ou desaparecidas na ditadura apresentada pela comissão.

O Instituto Vladimir Herzog, que hoje promove ações de defesa da democracia, destaca que as recomendações da CNV não foram seguidas.

Ainda assim, defensores dos direitos humanos como Jurema Werneck, diretora executiva da Anistia Internacional Brasil, comemoram os feitos da CNV. "A Comissão da Verdade tem uma função fundamental para garantir o nosso direito à verdade. Veja: garantir o nosso direito à verdade, saber o que de fato aconteceu, saber onde foi que a nação errou com seus cidadãos e cidadãs", afirma

"É preciso saber dar o nome aos responsáveis, demonstrar o que fizeram, que as suas vítimas possam ter esse momento de narrar seus traumas, suas experiências terríveis, e que a gente saiba quem sofreu, quem morreu, onde estão os desaparecidos e os nomes daqueles que foram torturados e mortos", segue ela.

Lei de Anistia

Com base em legislação internacional, a CNV entendeu que a Lei de Anistia não pode proteger autores de crimes contra a humanidade, como a tortura. Por isso recomendou a punição de agentes públicos.

A lei foi instituída poucos anos antes do fim do regime militar, em 1979, pelo presidente João Baptista Figueiredo. Concedeu perdão a perseguidos políticos, mas também beneficiou responsáveis por crimes, como o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, comandante de um centro de tortura no extinto DOI-CODI.


Coronel Brilhante Ustra em depoimento na Comissão Nacional da Verdade / CNV/Agência Brasil

A ausência de punição de agentes da ditadura tem consequências que persistem até hoje, segundo aponta Raimundo Bonfim, coordenador da Central de Movimentos Populares e da Frente Brasil Popular.

"Vamos lembrar aqui que a anistia foi ampla, geral e irrestrita. Ou seja, quem cometeu os crimes, que foram os militares e em nome do Estado brasileiro, foram anistiados igualmente àqueles que sofreram a repressão. Então, as forças policiais, o Exército Aeronáutico, a Marinha, sempre se sentiram à vontade. Como não foram punidos pelos crimes cometidos em 1964, de vez em quando eles flertam com a tentativa de um novo golpe. E encontraram no último presidente da República [Jair Bolsonaro] essa narrativa e esse apoio", declara o militante.

Ditadura e a responsabilização em nações próximas

Na América Latina, alguns países lidaram de forma diferente com seu passado.

Na Argentina, que passou por uma ditadura militar entre 1976 e 1983, a Comissão Nacional sobre o Desaparecimento de Pessoas (Conadep), equivalente à Comissão da Verdade brasileira, foi criada logo que o regime terminou. Dados oficiais dão conta que houve 8 mil desaparecimentos políticos. Movimentos populares estimam um número maior, com 30 mil mortos.

O processo argentino é resumido por Julia Almeida, doutoranda em Direito na Universidade de São Paulo e professora da Universidade Anhembi Morumbi: "Acaba a ditadura em 1983 e, em 1984, eles já vão ter lá o relatório deles, 'Nunca mais', conseguindo dar caldo para o processo de judicialização. Ou seja vão começar a responsabilizar os militares".

Sem entraves, em 2024, a Justiça argentina condenou mais 10 ex-agentes da ditadura à prisão perpétua.

Como a Argentina, o Chile também pôde responsabilizar envolvidos no regime militar de Augusto Pinochet, que perdurou entre 1973 e 1990. A comissão da verdade chilena foi criada em 1991 e apontou a ocorrência de 2.130 casos de violações de direitos humanos. Um outro levantamento, de 2011, revelou números maiores.

"O Pinochet foi o único governador de 1973 a 1990, o único ditador, e construiu assim uma ditadura muito sangrenta, de perseguição não só aos militantes políticos, mas também aos povos originários do Chile, os mapuches e, principalmente, às classes sociais mais pobres resultando na morte de mais de 3 mil oponentes chilenos e 40 mil desaparecidos. São números impressionantes", relembra Fernanda Lima, doutora em História pela Universidade de Campinas (Unicamp).

A historiadora explica que, apesar da criação de uma Lei de Anistia chilena ainda no regime militar, o país conseguiu punir envolvidos na ditadura por causa de brechas na legislação. "Um caso famoso foi de um estudante de origem indígena de Temuco. O Tribunal de Temuco conseguiu condenar a Carabineiros, que seria [equivalente] a nossa polícia militar. A polícia chilena sumiu com o estudante na região de Temuco, a zona chilena. Aí os juristas encontraram uma brecha em não conseguir se provar que ele foi morto ou preso, mas ele foi sequestrado. E isso não estava dentro da lei. Então, eles foram punidos por essa razão e não estaria dentro do texto da Anistia."

Memória e Justiça

No ano em que o golpe militar completa 60 anos, o governo brasileiro vai na contramão das políticas de memória e justiça. O presidente Lula vetou atos que marcam e repudiam o golpe de 64. No intuito de não provocar atritos com militares, Lula também desistiu do projeto de criar um Museu da Memória e dos Direitos Humanos, focado no período ditatorial.

"A Anistia se preocupa muito com as declarações ou com as notícias de que o presidente da República atual não quer fazer aquilo que deve", critica Jurema Werneck. "Garantir à sociedade brasileira, à nação brasileira, o direito à memória; marcar aqueles fatos para que possamos aprender com eles e repudiá-los para que não aconteça. Porque estivemos a ponto deles acontecerem novamente."

A Polícia Federal e o Supremo Tribunal Federal conduzem investigação e julgamento sobre a tentativa de golpe de estado entre o fim de 2022 e início de 2023, com suposta articulação ou colaboração do ex-presidente Jair Bolsonaro e militares.

A avaliação de pesquisadores e movimentos populares é de que este golpismo de hoje é reflexo da falta de responsabilização pelos crimes da ditadura militar. A repetição de pedido de perdão corrobaria isso.

"Assim como nós avaliamos que é um erro ter anistiado os executores da ditadura militar, do regime de exceção, também agora não se pode, em hipótese alguma, admitir, compactuar com a possibilidade de anistia", afirma Raimundo Bonfim.

Werneck concorda e conclui. "Memória é um dos direitos fundamentais para a superação das graves violações direitos humanos que o Brasil viveu."

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