Geral Comunidades quilombolas

Ao menos 33 mil famílias vivem em áreas quilombolas não regularizadas

Por Maria Eduarda Portela e Mateus Salomão

28/08/2023 às 10:20:09 - Atualizado há
Daniel Ferreira/Metrópoles

Pelo menos 33,4 mil famílias vivem em territórios quilombolas ainda não regularizados no Brasil. A quantidade consta em levantamento do Metrópoles feito com base em dados Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), em que são apresentados na listagem de processos de titulação das terras.

Vale destacar que, além do Incra, o processo de titulação de terras quilombolas também pode ser realizada por entes municipais e estaduais. Compete à autarquia titular apenas os territórios localizados em áreas públicas federais ou em áreas particulares, mediante desapropriação.


A titulação dos territórios quilombolas é um processo administrativo pelo qual as comunidades conseguem o reconhecimento formal das suas terras diante do Estado. No entanto, apesar de garantido na Constituição, o processo de demarcação é tortuoso, como longa burocracia, envolto em interesses econômicos e até pressão política.


Para Allyne Andrade, doutora em direito pela Universidade de São Paulo (USP) e professora do Instituto de Ensino e Pesquisa (Insper), a falta de titulação das terras quilombolas é um agravante nos conflitos territoriais.


"A titulação é vital para a existência dessas comunidades. Sabemos que o Brasil é um país caracterizado pelo conflito fundiário e pela violência, esse conflito territorial e a falta de titulação faz com que as comunidades estejam sempre na trincheira no combate pelo reconhecimento dos seus direitos e pelo modo de vida", afirma.


De acordo com o Censo 2022, o Brasil tem 1,32 milhão de pessoas que se identificam como quilombolas. O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) apontou que a maior parte dessa parcela da população se concentra na região Nordeste, com mais de 68% do total.


Rafael Sanzio Araújo dos Anjos, professor da Universidade de Brasília (UnB) e com pesquisas sobre a geografia Afro-brasileira, explica que a titulação é importante para a preservação ancestral das comunidades quilombolas que compõem o Brasil. "A regularização, a titulação dos territórios serve para garantir a sua sobrevivência, para manter a sua territorialidade contemporânea construída com a ancestralidade quilombola."


Processo de titulação

A Constituição de 1988 garante aos remanescentes das comunidades quilombolas o direito à propriedade definitiva de seus territórios. No entanto, para assegurar a titulação de suas terras, essa população passa por um longo processo burocrático.


O processo de titulação conta com o apoio das comunidades, antropólogos e outros especialistas. Para dar início, as comunidades devem apresentar uma certidão de autorreconhecimento que será emitida pela Fundação Cultural Palmares. Esse documento demonstra que há um processo histórico social dessa população dentro de uma área delimitada.


Em seguida é elaborado o Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID), que tem como objetivo identificar o território quilombola e será elaborado pelo Incra daquela região em específico. Nesse documento serão apresentados um relatório antropológico, limites geográficos, cadastro das famílias e informações etnográficas.


No próximo passo, o RTID é publicado e os interessados no território terão até 90 dias para contestar as informações apresentadas no documento, sejam elas sobre delimitação geográfica ou o número de famílias presentes dentro da comunidade. Se houver alguma manifestação em relação ao relatório, o Incra terá mais 30 dias para tomar as medidas necessárias de ajuste.


Após o julgamento das contestações e recursos, o presidente do Incra publica uma portaria no Diário Oficial da União (DOU) em que encerra a etapa de identificação dos limites geográficos do território quilombola. Caso haja algum não quilombola dentro do território delimitado, é publicado um decreto de desapropriação. Por fim, é emitido o título de propriedade coletiva em nome da associação dos moradores da comunidade.


Segundo Allyne Andrade, até completar todo o processo de titulação as comunidades e as lideranças ficam muito expostas aos conflitos, uma vez que há grande interesses econômicos e imobiliários em alguns territórios.


"Você tem muitos ocupantes ilegais daquele território, às vezes mineradores ilegais, pessoas da agricultura predatória e a especulação imobiliária que começam a pressionar aquela comunidade pra ela sair dali", destaca a professora do Insper.


Procurado, o Incra afirmou que a retomada da política de regularização fundiária de territórios quilombolas, "após anos de paralisação, é uma das prioridades da atual gestão do Incra".


"Diante da complexidade e peculiaridades de cada processo, fatores como disponibilidade de recursos humanos, orçamentários e financeiros, capacidade operacional das unidades do Incra, assim como a conclusão do processo judicial de desapropriação, impactam o andamento regular do procedimento de regularização das comunidades de forma diferenciada", observa a autarquia.


Conflitos

Nesse contexto, na última semana a líder quilombola Bernadete Pacífico, de 72 anos, mais conhecida como Mãe Bernadete, foi assassinada a tiros dentro da associação do Quilombo Pitanga dos Palmares, em Simões Filho, na Bahia.


Bernadete também era coordenadora nacional da Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos (Conaq). Ela lutava contra a violência sofrida pelo povo quilombola e pela titulação de seu território.


Wellington Pacífico, filho de Mãe Bernadete, informou que semanas antes de ser assassinada ela pediu mais segurança e proteção ao Supremo Tribunal Federal (STF). Allyne Andrade afirma que, além da Mãe Bernadete, outras lideranças também são ameaçadas enquanto aguardam a titulação dos seus territórios.


"O reconhecimento da titularidade é para proteção, para segurança jurídica dessas pessoas, mas para segurança da vida desses líderes comunitários. A gente acabou de passar pelo trauma da morte da Bernadete Pacífico, que era uma liderança quilombola, mas a gente tem inúmeros outros casos de ameaça a líderes quilombolas no Brasil", comenta.


Rafael Anjos declara que a falta de titulação causa insegurança nos territórios e dificulta o acesso das comunidades a itens básicos, como saúde e educação.


"Essa insegurança na cidadania não cabe. a nossa constituição garante o direito da saúde, educação, esse lugar no território é importante para a manutenção existencial de uma comunidade que está no brasil há cinco séculos", reforça o professor da UnB.


Rafael Anjos expõe que o governo brasileiro precisa olhar com mais atenção aos quilombos, uma vez que eles "fazem parte da formação do Brasil".


Comunidade Kalunga

Localizado nos municípios goianos de Cavalcante, Monte Alegre e Teresinha do Goiás, o território Kalunga ainda batalha para garantir a totalidade do reconhecimento do território. O processo no Incra caminha desde 2004, ou seja, há cerca de 19 anos.


Adriano Paulino, de 25 anos, presidente da associação Kalunga comunitária do engenho II, considera a regularização, além de um reconhecimento da história da comunidade, representa a liberdade de "ir e vir, plantar e cultivar". "São 40 anos de luta com o território Kalunga para indenização das nossas terras, que possa plantar e cultivar. A gente já planta e cria, mas em um pedaço pequeno", diz.


Ele ressalta que uma parcela do território ainda enfrenta conflitos relacionados à desapropriação de parcela dos territórios, que estão sob posse de fazendeiros. "Se a gente vai ter a indenização ou não, a gente não sabe como vai ser. É muito complicado imaginar o futuro", afirma.


Segundo o presidente da associação Kalunga, muitos jovens ainda deixam o seu território em busca de novas oportunidades nos municípios, seja ela profissional ou educacional. Contudo, muitas vezes não conseguem aplicar este conhecimento dentro da comunidade por não ter a estrutura necessária para isso.


"A juventude sai em busca de melhorias. Hoje a gente trabalha dentro do território com agricultura familiar e a segunda fonte de renda é como guia turístico", afirma Adriano Paulino. Ele reforça que a comunidade ainda precisa de melhorias, mas cada vez mais conseguem ampliar a receita da comunidade.


Os Kalungas estão situadas na região da Chapada dos Veadeiros e são responsáveis por grande parte do turismo na região. Os quilombolas trabalham principalmente como guias, mas também são donos de restaurantes onde servem uma comunidade tradicional.


Fonte: Metropoles
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