No Sul do Brasil, onde o frio corta o ar e o verde dos campos parece interminável, o leite é mais do que um produto: é uma cultura, uma herança e um pacto silencioso entre o homem e a terra. O Rio Grande do Sul, responsável por cerca de 13% da produção nacional, vive um dos momentos mais desafiadores e, ao mesmo tempo, mais emblemáticos de sua história leiteira. Entre as maiores catástrofes climáticas já registradas no estado e as oscilações de preços, os produtores gaúchos seguem entregando qualidade, inovação e, principalmente, resistência.
De acordo com a Emater/RS-Ascar, o Estado soma mais de 150 mil famílias envolvidas na atividade leiteira, com forte predominância de pequenas e médias propriedades. A pecuária leiteira é a principal fonte de renda em cerca de 250 municípios, sustentando o comércio local e as cooperativas que transformam o leite cru em derivados que circulam em todo o país.
"O Rio Grande do Sul é, acima de tudo, um exemplo de estrutura produtiva resiliente. Mesmo quando o clima castiga, há método, há solidariedade e há inovação", analisa Marta Conrado, especialista em desenvolvimento rural e professora da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM).
As enchentes históricas de 2024 afetaram duramente a logística da cadeia produtiva. Estradas destruídas, rotas de coleta interrompidas e prejuízos em pastagens e silos criaram um cenário de colapso que poderia ter sido devastador. No entanto, cooperativas e produtores reorganizaram rapidamente a base de operação. A Cooperlacto, de Três de Maio, por exemplo, montou pontos alternativos de recepção em galpões improvisados e usou veículos menores para acessar regiões isoladas.
"A gente aprendeu que a produção de leite é uma maratona, não uma corrida. Cada litro entregue é resultado de planejamento e teimosia", diz Rogério Baumgarten, produtor e presidente da cooperativa.
Essa capacidade de reação também se explica pela tecnologia. O RS é hoje um dos estados mais digitalizados do país na gestão leiteira, com uso crescente de ordenha robotizada, sensores de ruminação e coleiras inteligentes que enviam alertas de cio e saúde animal. Segundo o Sebrae/RS, o número de propriedades que utilizam sistemas de gestão e automação cresceu 38% nos últimos três anos, mesmo em meio às crises climáticas e econômicas.
"A inovação virou ferramenta de sobrevivência. Não é luxo. É o que permite o produtor controlar custo, produtividade e qualidade em tempo real", comenta Henrique Salgado, consultor em tecnologia agropecuária.
Com aproximadamente 3,8 bilhões de litros de leite por ano, o Rio Grande do Sul é o segundo maior produtor do Brasil, atrás apenas de Minas Gerais e em disputa direta com o Paraná. Essa produção abastece tanto o mercado interno quanto a exportação. Nos últimos dois anos, o estado se tornou protagonista na venda de leite em pó e queijos para países do Mercosul, especialmente Paraguai e Uruguai. A indústria gaúcha, marcada por cooperativas tradicionais como Dália, Piá e Cosulati, tem investido em eficiência energética e sustentabilidade, incorporando biodigestores e energia solar para reduzir custos e emissões.
A tecnologia de precisão é hoje uma das marcas da cadeia produtiva gaúcha. Monitoramento por satélite de pastagens, drones que acompanham o crescimento do milho e softwares que cruzam dados de nutrição e produção permitem que a decisão do produtor seja cada vez mais baseada em dados. "O RS se antecipou na digitalização do campo. Hoje, muitos pequenos produtores operam com o mesmo nível de informação que grandes fazendas no Sudeste", explica Cláudia Nunes, pesquisadora da Embrapa Clima Temperado. Ela destaca ainda que, em 2025, o estado deve ultrapassar 12 mil propriedades com sistemas integrados de monitoramento remoto.
Enquanto o Paraná aposta em grandes cooperativas e expansão de produtividade média por vaca que já chega a 2.400 litros por vaca/ano , o Rio Grande do Sul aposta na qualidade do leite e na diversificação de produtos. O Brasil como um todo ainda enfrenta gargalos logísticos e tributários que limitam exportações, mas o Sul desponta como polo de excelência. Dados da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA) mostram que 60% das exportações nacionais de lácteos em 2025 têm origem em cooperativas do RS e PR.
"O diferencial gaúcho está na consistência. O Estado construiu uma cultura cooperativista que vai além da economia, é uma filosofia. O produtor não se vê sozinho, ele pertence a um sistema de apoio mútuo", analisa José Otávio Sordi, economista da Federação das Cooperativas do RS (FecoAgro).
Essa estrutura colaborativa foi determinante para o setor resistir às enchentes sem paralisar a produção.
Apesar dos avanços, o setor ainda sofre com o alto custo de produção e a instabilidade do mercado. Segundo o Centro de Estudos Avançados em Economia Aplicada (Cepea/USP), o custo médio do litro de leite no Sul subiu 14% em 2025, pressionado por energia elétrica, transporte e insumos importados. O produtor tem se defendido com gestão de custos, energia renovável e planejamento de compra de insumos.
"Quem mede tudo, controla tudo. O produtor que sabe o custo por litro e antecipa movimentos de mercado sobrevive; quem não faz isso, fica pelo caminho", afirma Henrique Salgado.
O futuro do leite gaúcho passa por consolidar programas de qualidade, exportação com valor agregado e políticas públicas de infraestrutura rural. Pontes e estradas seguras não são luxo, são a base do transporte da produção. Programas estaduais de incentivo à energia limpa e à certificação de origem também podem garantir competitividade internacional.
O exemplo gaúcho mostra que a cadeia produtiva do leite não é apenas um setor econômico, mas um símbolo de resistência nacional. Em cada litro produzido há suor, ciência e estratégia. Há uma tecnologia que avança, uma vaca monitorada, um produtor que planeja, um campo que se reinventa. No Sul, o leite é um espelho da alma do povo: resiliente, inteligente e impossível de parar.