Mulheres que conquistam o direito de existir: a Defensoria Pública como última trincheira da dignidade

Em um país onde mais de 60% das pessoas não têm acesso pago a advogado, defensoras e defensores públicos são a linha de frente da justiça para mulheres vulneráveis — especialmente negras, pobres e sozinhas.

Por Por Luciana Pombo - Blog da Luciana Pombo | Jornalismo que não arquiva a verdade em 05/11/2025 às 14:22:51

Quando uma mulher atravessa a porta da Defensoria Pública, ela geralmente já acumulou um histórico invisível de silêncios, medos e portas fechadas. Violência doméstica, abandono de pensão alimentícia, disputa de guarda, despejo iminente, negação de vagas em creche, humilhação no trabalho, discriminação racial. Cada uma dessas violências representa não apenas um problema jurídico, mas um impedimento à vida plena. E é aí que a Defensoria Pública entra: não como detalhe administrativo, mas como linha de defesa da cidadania.

Dados recentes confirmam a intensidade dessa demanda. Segundo relatório do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) e do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), entre 2013 e 2023 foram assassinadas 47.463 mulheres no Brasil, média de cerca de 13 mulheres por dia. Em 2023, foram 3.903 vítimas, o que representa uma taxa de 3,5 homicídios para cada 100 mil mulheres. Em 2024, de acordo com o Mapa da Segurança Pública, foram 1.459 casos de feminicídio, quatro vítimas por dia, o que representou aumento de 0,69 % em relação a 2023.

Em paralelo, as Defensorias Públicas batem recorde de atendimentos. Em 2024 foram realizados mais de 29,5 milhões de atendimentos no Brasil, crescimento de quase 20 % em relação ao ano anterior. Ainda assim, segundo a última "Cartografia da Defensoria Pública no Brasil: 2025", a cobertura institucional ainda deixa lacunas: o Brasil tinha 7.520 defensoras e defensores públicos, o que representa cerca de um profissional para cada 31 mil habitantes.

Num país onde os homicídios dolosos gerais caíram 6,3 % em 2024 (35.365 contra 37.754 em 2023), a violência contra a mulher segue com velocidade própria, implicando que a garantia de direitos exige mais do que queda estatística: exige presença.

No Espírito Santo, a atuação da Defensoria Pública do Estado do Espírito Santo tem se destacado. O núcleo dedicado à mulher, ao idoso e à população LGBTQIA+ expandiu para interiorização, e registrou aumento expressivo nos atendimentos a mulheres em situação de violência: em 2023, os registros cresceram 61 % em relação a 2022 (900 para 1.450, no primeiro semestre).  

"Essas mulheres não procuram apenas uma medida protetiva. Elas pedem o direito de existir. Pedem tempo, segurança e o mínimo de escuta. O papel da Defensoria é transformar dor em ação", afirma a defensora pública Juliana Venturini.

Já no Paraná, a situação mostra avanços e falhas. A cobertura da Defensoria ainda não alcança todas as comarcas, e em municípios como Almirante Tamandaré, na Região Metropolitana de Curitiba, o atendimento efetivo se apresenta como vazio real: a mulher vítima de violência ou em disputa de guarda muitas vezes precisa se deslocar para Curitiba para ser atendida.

"A distância mata direito, a quilometragem entre o problema e a porta da Defensoria decide resultados antes do juiz", resume a professora de Direito Daniela Lima resume.

O cenário se agrava quando se combinam vulnerabilidades: mulheres negras são 68 % das vítimas de homicídios femininos em 2023. A pobreza, a informalidade no trabalho, a dupla ou tripla jornada, a maternidade solo, fazem parte do contexto que precede a porta da Defensoria.

"A lei precisa caber no tempo de quem está em risco; se a resposta demora, a Justiça vira memória do que poderia ter sido", aponta a defensora pública Carla Magalhães.

O aspecto institucional também precisa ser ressaltado: a Lei nº 13.104/2015, que tipificou o feminicídio no Código Penal, completou dez anos em 2025. Já a Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/2006) continua sendo pilar da proteção, mas não basta. O mesmo relatório do FBSP revela que 64,3 % dos feminicídios ocorrem dentro de casa e oito em cada dez vítimas eram mortas por companheiros ou ex-companheiros. 

A Defensoria, então, atua não só após o crime, mas antes: mediação extrajudicial, registro civil, pensão alimentícia, guarda de crianças, tutela de mulheres vítimas de violência, acompanhamento em abrigos, orientação sobre direitos trabalhistas e assistenciais. Esses saltos fazem diferença. Um estudo da Fundação Getulio Vargas e da Associação Nacional das Defensoras e Defensores Públicos (ANADEP) concluiu que cada real investido na Defensoria pública retorna até cinco reais em economia social: menos presos, menos famílias desalojadas, menos doenças não tratadas, menos litígios que travam o sistema.

E as histórias se repetem. A diarista Rosa, 38 anos, de Colombo (PR), conseguiu fugir de um companheiro agressor e, com a ajuda de uma defensora, garantiu a mudança de casa, a guarda dos filhos, e hoje dorme em paz:

"Eu achava que não tinha saída. Quando fui lá, ela me explicou meus direitos, me acolheu, me ajudou a mudar de casa. Hoje eu durmo em paz."

Em Vitória (ES), a estudante Nayara, 22 anos, conseguiu acesso a tratamento de saúde que salvou sua vida após agressão:

"A defensora não me viu como vítima, me viu como alguém que podia recomeçar."

Mas a estrutura institucional ainda exige atenção. A cobertura das Defensorias Públicas cresceu de 47 % em 2021 para 59,8 % em 2025, segundo a Cartografia da Defensoria Pública no Brasil. Ainda assim, 15 estados permanecem com menos de 70 % de cobertura. É uma foto de meio caminho, quando a vida exige chegada.

O Brasil que funciona tem um traço: alguém ajudou a traduzir direito em vida real. A Defensoria Pública é essa tradução. Mas para que a promessa constitucional se realize, Artigo 134 da Constituição Federal, ela precisa de mais recursos, maior capilaridade, maior atuação preventiva, maior sensibilidade de gênero. Como definiu o constitucionalista Luís Roberto Barroso, "a Defensoria Pública é um instrumento civilizatório". Não é metáfora, é teste. E o país ainda está em laboratório.

Onde a Defensoria chega, a vida ganha tempo, proteção e futuro. Onde ela falta, o risco escolhe primeiro, e a mulher perde antes mesmo de ser ouvida.

Comunicar erro

Comentários

Gatas ClassDeusas do Luxo