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A Constituição de 1988 escreveu uma promessa, o acesso universal à Justiça, e colocou a Defensoria Pública como caminho, instituição essencial à função jurisdicional do Estado, artigo 134. Quase quatro décadas depois, a promessa continua sendo disputada rua a rua. No Brasil, a Defensoria não é luxo para casos raros, é política pública para uma maioria que oscila entre a pobreza e a vulnerabilidade intermitente, gente que precisa de registro civil, pensão, abrigo contra violência, remédio, vaga em escola, defesa criminal e mediação para não ser despejada. Em termos simples, onde a Defensoria chega, o direito sai do papel.
No plano nacional, o mapa de atendimento ainda é incompleto. Há estados em que todas as comarcas contam com atuação defensiva e estados em que a cobertura é parcial, com núcleos concentrados nas capitais e cidades polo. Essa fragmentação se traduz em duas realidades, quem mora perto de um núcleo encontra orientação e portas abertas, quem mora longe coleta guias, perde prazos e se perde no caminho. A desigualdade territorial contamina o próprio conceito de cidadania, porque muda o sentido do verbo acessar conforme o CEP.
O Espírito Santo é um bom exemplo de como expansão institucional consegue produzir impacto social concreto. A Defensoria capixaba estruturou núcleos de atendimento em áreas sensíveis, criou frentes específicas para populações em situação de rua, mulheres vítimas de violência, idosos, comunidades tradicionais e público LGBTQIA+, e investiu em educação em direitos e atendimento remoto para reduzir o abismo geográfico. O resultado aparece em números de atendimentos, mas aparece sobretudo no cotidiano de quem precisava de um documento, de uma medida protetiva, de um medicamento, de um acordo de aluguel para não virar despejo.
"Quando uma pessoa procura a Defensoria, ela não pede um favor, ela exige um direito, e nosso dever é transformar essa exigência em resposta concreta", define a defensora pública Juliana Venturini, de Vitória.
No Paraná, a fotografia é outra, a instituição existe e tem equipes qualificadas, mas a cobertura está longe de alcançar todo o território. A Região Metropolitana de Curitiba, com mais de três milhões de habitantes, convive com lacunas que obrigam deslocamentos e criam filas invisíveis. Almirante Tamandaré, que vive dilemas crônicos de segurança, habitação e renda, é prova viva desse vazio, não há atendimento efetivo local, a pessoa vulnerável precisa sair do município para ser ouvida, e quem não tem passagem ou tempo simplesmente desiste. É o tipo de desigualdade que não aparece em estatística de gabinete, mas aparece nas histórias que a rua repete.
"Distância mata direito, a quilometragem entre o problema e a porta da Defensoria decide resultados antes do juiz", disse a professora de direito processual da UFPR Daniela Lima.
A economia do acesso também é contraintuitiva. Estudos acadêmicos e relatórios institucionais têm apontado, reiteradamente, que cada real investido na Defensoria retorna múltiplos ao orçamento público, porque evita despejos que virariam acolhimento, previne internações, reduz litigiosidade ao mediar conflitos, baixa custos de encarceramento ao garantir defesa técnica e desafoga o sistema de Justiça com soluções extrajudiciais. O país insiste em discutir custo; a realidade mostra retorno.
"O acesso à Justiça é o requisito mais básico de um sistema jurídico moderno, sem ele os direitos são meras palavras", pontuou o jurista Mauro Cappelletti, referência mundial no tema.
Há um padrão social que explica a fila. As principais portas de entrada são família e violência doméstica, infância e juventude, registro civil e saúde. Em seguida vêm moradia, trabalho e consumo, todos com o mesmo traço, são direitos que definem a sobrevivência cotidiana. No Espírito Santo, projetos de educação em direitos levaram oficinas a bairros periféricos e territórios tradicionais; no Paraná, iniciativas de mutirões e acordos extrajudiciais têm mostrado capacidade de resolver demandas repetitivas antes que elas se transformem em processo.
"O que chamam de judicialização não é capricho, é a reação de quem precisa de um remédio, de uma cirurgia, de um tratamento que a administração não entregou; quando o Estado falha, a Defensoria vira a porta de entrada do SUS que funciona", observou o defensor público Leonardo Rezende, com atuação em saúde.
A violência contra a mulher, tema que brutaliza estatísticas e biografias, exige capilaridade. Medidas protetivas perdem eficácia quando dependem de ônibus, dinheiro e sorte. Núcleos especializados encurtam trajetórias, integram atendimento psicológico, assistencial e jurídico, e criam redes com Delegacias da Mulher e Ministério Público para que a proteção saia do papel em horas, não em semanas.
"A lei precisa caber no tempo de quem está em risco; se a resposta demora, a Justiça vira memória do que poderia ter sido", comentou a defensora Carla Magalhães, que atua em moradia e gênero.
O caso de Almirante Tamandaré expõe o problema com didatismo cruel. Município populoso, de periferia metropolitana, com bolsões de pobreza e histórico de crimes com conivência de agentes públicos, segundo relatos recorrentes, não tem atendimento efetivo da Defensoria no território. A consequência é óbvia e perversa, a ausência de porta de entrada empurra conflitos para soluções improvisadas, deixa crianças sem pensão, mulheres sem medida protetiva, famílias à beira do despejo e réus sem defesa técnica a tempo.
"Sem Defensoria, o pobre é condenado à ausência, e a ausência é uma forma de condenação antes da sentença", sentencia o professor de políticas públicas, Ricardo Mota.
A tecnologia abriu atalhos que precisam virar regra. Canais de pré-atendimento online, videochamadas, aplicativos simples para envio de documentos e marcação de horário encurtam distâncias e economizam dinheiro de quem não tem. O Espírito Santo tem experimentado esse caminho com atendimento digital e calendário de interiorização. O Paraná precisa acelerar a adoção de rotas parecidas, sobretudo na RMC, onde a demanda explode e a rede ainda não alcança. Sem isso, a modernização vira vitrine de capital, e o interior continua analógico.
O financiamento é a última linha dessa equação. A Defensoria recebe uma fração do que o sistema de Justiça consome, e, mesmo assim, entrega mais por real investido. Autonomia administrativa e orçamentária, concursos periódicos e carreira atraente não são privilégios corporativos, são condições para que a promessa constitucional deixe de ser promessa. O constitucionalista Luís Roberto Barroso já afirmou, em conferência acadêmica, que "a Defensoria Pública é um instrumento civilizatório", e o adjetivo não é exagero, é métrica, sem ela o Estado se torna um conjunto de portas com fechaduras diferentes para bolsos diferentes.
O Brasil que funciona tem um traço em comum, alguém ajudou a traduzir direito em vida real. A Defensoria é essa tradução. No Espírito Santo, onde a capilaridade cresceu, o resultado aparece nas histórias que não viraram tragédia. No Paraná, onde a cobertura ainda falha, a transformação depende de vontade política e método. Em Almirante Tamandaré, onde o atendimento efetivo não chega, o mapa do acesso à Justiça ainda está por desenhar. O país que a Constituição desenhou em 1988 só fica de pé quando o artigo 134 deixa de ser texto e vira endereço, equipe e horário de funcionamento.
Fonte: Fontes: - Constituição Federal de 1988, art. 134. - Relatórios institucionais de defensorias estadua