Eduardo Galeano lançou em 1967, quatro anos antes do seu clássico "As veias abertas da América Latina", o livro "Guatemala - Ensaio geral da violência política na América", em que se debruça sobre o significado da "ativa, massiva e maciça presença militar estadunidense neste país" para defender a todo custo os interesses da United Fruit Company (UFC) - a multinacional bananeira que escravizava os trabalhadores rurais.
Na obra, o então jovem escritor uruguaio descreve como "este pequeno país de índios analfabetos e mortos de fome se erguia sobre seus pés" e dos riscos que isso representava para o imperialismo, uma vez que "a colônia queria se tornar pátria".
"Até 1944, o país havia sido testemunha e vítima, porém não protagonista de sua história. Há longo tempo o destino da Guatemala vinha sendo jogado à própria sorte de moedas estrangeiras, em Wall Street ou em Washington ou nos quartéis generais do Pentágono", sintetizou. "Foi na Guatemala o primeiro laboratório latino-americano para a aplicação da guerra suja em grande escala", apontou.
Desde a Revolução de Outubro de 1944, que depôs a ditadura de Jorge Ubico e levou ao poder - por ampla maioria nas urnas - dois presidentes populares: Juan José Arévalo (1945-1951) e Jacobo Árbenz (1951-1954), foram se consolidando políticas nacionalistas e desenvolvimentistas, que faziam emergir a participação indígena, maioria antes excluída pelas elites servis ao estrangeiro.
Árbenz aprofundou transformações, principalmente com a Lei da Reforma Agrária, que possibilitou a expropriação das terras não cultivadas, afetando em cheio os interesses gananciosos da UFC, em um país onde 2% dos proprietários controlavam mais de 70% da área rural.
"United Fruit: um Estado dentro do Estado"
"A UFC, um Estado dentro do Estado, dono da terra, da ferrovia e do porto, exonerada de impostos e livre de controles, deixou de ser onipotente em suas vastas propriedades. As novas leis trabalhistas e de seguridade sociais tornaram possível o desenvolvimento do mercado interno, o aumento do poder aquisitivo e o nível de vida dos trabalhadores. Diante da construção de rodovias e a criação do porto de São José, no Pacífico, se rompeu o monopólio que a United Fruit exercia sobre o transporte e o comércio. Foram realizados ambiciosos projetos de desenvolvimento econômico, como as obras de eletrificação do país, impulsionados com capital nacional". Com esta diretriz, já nos primeiros meses de 1954, haviam sido beneficiadas mais de 100 mil famílias - em um país de três milhões de habitantes.
Com riqueza de detalhes, Galeano expõe "o papel protagônico que os EUA desempenharam neste conflito", assim como a sua "ocultação após o golpe contra Árbenz em 18 de junho de 1954".
No Brasil, o presidente Getúlio Vargas se suicida em 24 de agosto do mesmo ano, gesto que leva o povo às ruas e adia o golpe por uma década.
"Guatemala é vítima, como a América Latina, de uma conspiração de silêncio e de mentira", ecoa uma gravação de 1967, relatando como "os donos dos meios de informação, que fabricam a opinião pública, ocultam e deformam os fatos com arbitrariedade e eficácia: as notícias encolhem até desaparecer ou incham até estourar, conforme convenha".
A barbárie ainda não havia chegado ao nível da psicopatia da década de 1970, quando os israelenses vieram para substituir os estadunidenses e foram além com seus manuais em hebraico. Na prática, ensinavam a abrir o ventre de mulheres grávidas, assar e comer crianças, estuprar em filas de até 20 soldados, introduzindo sífilis e gonorreia, "palestinizando" comunidades mantidas em campos de concentração para tentar apagar de uma vez por todas a resistência maia.
Galeano desvenda o papel que desempenharam no golpe, John Foster Dulles, secretário do Departamento de Estado no período 1953-1959 durante a administração Eisenhower, e seu irmão, Allen Dulles, o tristemente célebre fundador e diretor da CIA durante mais de 20 anos.
Para termos a dimensão da barbárie, oficialmente, entre 1960 e 1996, a ditadura guatemalteca assassinou 200 mil pessoas e desapareceu outras 45 mil, cinco mil delas crianças, sempre com capital, treinamento e chancela dos governos estadunidense e israelense.
"vítimas do terrorismo de Estado"
"Estatísticas: nos últimos quinze anos, um assassinato político ocorreu na Guatemala a cada cinco horas. Na maioria dos casos, os mortos são mortos sem corpos, 'desaparecidos', camponeses pobres sem rosto ou nome, vítimas do terrorismo de Estado. Cabeças em estacas frequentemente aparecem à beira das estradas. O crime se torna então um espetáculo público, como nos tempos da Inquisição, para servir de alerta aos vivos. Os camponeses então perderam suas terras e sua voz", descreveu.
Servindo como "presidente", Castillo Armas "cumpriu sua missão". "Devolveu as terras ociosas expropriadas à UFC e outros latifundiários e entregou o subsolo de 4.600.000 hectares, quase a metade do país, ao cartel internacional do petróleo. O Código do Petróleo foi redigido em inglês e chegou em inglês ao Congresso: foi traduzido para o espanhol a pedido de um deputado que ainda tinha um resto de vergonha".
Com dor, Galeano recorda de Rogelia Cruz Martínez, companheira sem a qual a obra não poderia ter sido escrita, pois foi quem permitiu a ele chegar até a resistência. "Rogelia, sequestrada, estuprada, ultrajada e assassinada brutalmente por um esquadrão da morte com a intenção de calar suas ideias e vingar sua militância revolucionária, grávida de três meses. Seu corpo apareceu debaixo de uma ponte de uma rodovia entre Siquinalá a Santa Lucía Cotzumalguapa. Havia estudado arquitetura na Universidade de San Carlos. Em 1958 foi eleita Miss Guatemala e em 1959 representou o país na disputa para Miss Universo", denunciou.
Pela contundência do que viu e relatou, a partir deste livro não haverá nenhum outro trabalho em que Galeano não faça referência à Guatemala até sua obra póstuma, "O caçador de histórias".
Fonte: Vermelho