Enquanto o agronegócio brasileiro colhe recordes de produção e exportação, uma face sombria emerge, atraindo a atenção das autoridades. Empresas em recuperação judicial continuam a obter crédito bancário, mesmo sem condições de honrar seus compromissos. Mas como isso acontece?
Investigações da Polícia Federal e da Receita Federal revelam um esquema engenhoso de manipulação financeira e jurídica, envolvendo produtores, advogados, contadores e, em alguns casos, até administradores judiciais. É um sistema complexo, onde a linha entre a legalidade e a fraude se torna tênue.
Nos últimos anos, o número de pedidos de recuperação judicial no agronegócio disparou. Dados da Serasa Experian indicam um aumento de mais de 30% no segundo trimestre de 2025 em relação ao ano anterior, o maior desde a Lei de Recuperação Judicial (11.101/2005). A princípio, a recuperação judicial visa permitir que empresas em crise reestruturem suas dívidas e evitem a falência. No entanto, investigações recentes sugerem que muitos pedidos são, na verdade, escudos para fraudes.
O objetivo? Facilitar a obtenção de novos financiamentos e ocultar patrimônio de forma ilícita. É um jogo perigoso, que coloca em risco a integridade de todo o setor.
As operações fraudulentas seguem um padrão bem conhecido pelas autoridades. Inicialmente, o grupo empresarial protocola o pedido de recuperação judicial, alegando incapacidade de pagamento. Essa medida suspende execuções e renegocia dívidas, oferecendo um alívio temporário. No entanto, em vez de reorganizar o negócio, muitas empresas utilizam o processo como uma estratégia para obter novos financiamentos, mascarar dívidas antigas e manter atividades em nome de terceiros.
Entre as práticas mais comuns, destacam-se:
Segundo a Polícia Federal, alguns esquemas cooptam administradores judiciais e consultores financeiros, ampliando o alcance da fraude.
A legislação brasileira, por si só, não impede o acesso a crédito bancário durante a recuperação judicial. Enquanto o nome da empresa não é negativado nos sistemas internos das instituições, ela pode operar normalmente, emitir notas e receber financiamentos. Muitos bancos preferem manter o relacionamento com o cliente rural e renegociar dívidas, acreditando que a recuperação é uma fase transitória, o que, infelizmente, abre margem para abusos.
Especialistas apontam que essa "zona cinzenta" jurídica favorece o surgimento de esquemas fraudulentos.
"O problema é que o crédito agrícola não possui monitoramento integrado com a Justiça. Uma empresa pode estar em recuperação judicial em Mato Grosso e, ao mesmo tempo, conseguir novo financiamento em Goiás" - explica um consultor financeiro ouvido pela reportagem.
A complexidade jurídica, a falta de integração entre bancos, tribunais e Receita Federal, e o ritmo do agronegócio, que mascara crises com a sazonalidade das safras, contribuem para a demora na detecção das fraudes. Soma-se a isso:
Quando o caso finalmente chega à Receita Federal ou ao Banco Central, os prejuízos já estão consolidados, e as empresas, muitas vezes, já transferiram bens ou encerraram atividades sob outro nome.
Em 2024 e 2025, operações como "Sísamnes" e "Replantio", conduzidas pela Polícia Federal, trouxeram à tona o uso criminoso das recuperações judiciais por grupos do agronegócio. Os investigadores identificaram fraudes bilionárias, incluindo compra de decisões judiciais, inserção de créditos fictícios e lavagem de dinheiro com uso de empresas fantasmas. Em alguns casos, advogados e administradores judiciais foram acusados de receber propinas para manipular processos em favor dos devedores.
Esses esquemas afetam diretamente bancos públicos e privados, fundos de investimento e fornecedores agrícolas, que amargam prejuízos milionários.
As fraudes em recuperações judiciais no agro não apenas prejudicam o sistema financeiro, mas também a credibilidade do agronegócio brasileiro. Empresas sérias enfrentam critérios de crédito mais rígidos, altos spreads bancários e maior burocracia para financiamento de safras. A confiança dos investidores internacionais é abalada quando o país estampa manchetes com esquemas de lavagem de dinheiro e corrupção judicial.
"O agronegócio brasileiro é pujante, mas a má fé de alguns grupos ameaça a reputação de um setor que é vital para a economia nacional" - afirmou um auditor da Receita Federal envolvido na análise dos casos.
Diante da escalada das fraudes, a Receita Federal integrou dados de processos de recuperação judicial ao Projeto Analytics, seu sistema de inteligência artificial e análise de redes. A ferramenta cruza CNPJs, CPFs, endereços, CNAEs e declarações fiscais para identificar grupos econômicos ocultos e empresas de fachada, muitas vezes usadas para fraudar o sistema de crédito rural. Com o apoio da IA, a Receita agora consegue mapear conexões suspeitas entre produtores, contadores e advogados, e emitir alertas preventivos antes que o prejuízo se consolide.
As operações policiais e o avanço da inteligência artificial sinalizam que a era da impunidade no agronegócio está chegando ao fim. Empresas que utilizam a recuperação judicial como ferramenta de fraude estão sendo rastreadas digitalmente, e as redes de cumplicidade entre contadores, advogados e administradores judiciais começam a ser desfeitas.
Aos produtores sérios e profissionais éticos, a recomendação é clara: transparência total, coerência contábil e governança rígida. Afinal, no Brasil de 2025, o campo ainda é fértil, mas também vigiado pela inteligência artificial.