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"Caráter eleitoreiro sempre atrapalhou Bolsa-Família", critica especialista


Congresso em Foco

O que foi pensado para ser uma polĂ­tica de Estado de redução da desigualdade social tornou-se uma polĂ­tica de Estado de manutenção da pobreza. Essa é a principal crĂ­tica que faz a cientista social Ivanisa Tetelroit, uma das principais responsĂĄveis pela implantação dos programas que geraram o Bolsa-FamĂ­lia, programa que acabou esta semana e que serĂĄ substituĂ­do pelo AuxĂ­lio Brasil.

"É uma questão-chave da forma como os governos passaram a enxergar esses programas: é preciso manter para sempre a relação de dependĂȘncia", critica, em entrevista exclusiva ao Congresso em Foco, Ivanisa, cientista social pela London School of Economics and Political Science, gestora pĂșblica do ex-Ministério do Planejamento.

Na avaliação de Ivanisa, a ideia original, surgida a partir do projeto de Renda MĂ­nima proposto pelo ex-senador Eduardo Suplicy (PT-SP), foi sendo ao longo do tempo distorcida para dar lugar a um programa de carĂĄter assistencialista, de evidente cĂĄlculo polĂ­tico-eleitoral. E, quando o seu propósito se torna polĂ­tico-eleitoral, a manutenção da relação de dependĂȘncia torna-se vital para que, com ela, venha a garantia do sentimento de gratidão do beneficiado e, consequentemente, o seu voto.

"Se é auxĂ­lio, é assistencialista"

No momento em que o Bolsa-FamĂ­lia vai chegando ao fim para ser substituĂ­do pelo AuxĂ­lio Brasil, esse viés assistencialista e eleitoreiro torna-se mais evidente. "O programa pode ter qualquer nome, Bolsa-Escola, Bolsa-FamĂ­lia, programa de renda bĂĄsica? Mas, quando vocĂȘ chama de AuxĂ­lio Brasil, vocĂȘ estĂĄ claramente dizendo que o que estĂĄ propondo é um auxĂ­lio. EstĂĄ, então, claramente dizendo que seu programa é assistencialismo".

Para Ivanisa, o que o governo Bolsonaro agora propõe, no entanto, só radicaliza a distorção que se iniciou com o Bolsa-FamĂ­lia. Embora o impacto social do programa seja inegĂĄvel e a sua amplitude, ao ter alcançado 45 milhões de pessoas, ele fugiu totalmente da ideia original de transferĂȘncia de renda imaginada por Suplicy para ganhar um carĂĄter meramente assistencial.

CrĂ­tica a Lula e Dilma

"Eu faço uma crĂ­tica aos governos Lula e Dilma", diz Ivanisa, referindo-se aos governos do PT, de Luiz InĂĄcio Lula da Silva e Dilma Rousseff. "Era um momento de se recuperar o propósito jĂĄ debatido na Constituinte de que a assistĂȘncia social se tornasse residual, se tornasse somente emergencial. O que a Constituinte queria era expandir as polĂ­ticas pĂșblicas prioritĂĄrias, de saĂșde, educação, previdĂȘncia. Se perdeu uma grande oportunidade nos governos petistas. Em vez de se criar efetivamente uma ferramenta de redução da desigualdade, criou-se uma ferramenta assistencialista, de carĂĄter polĂ­tico-eleitoral", avalia.

Seja no antigo Ministério do Planejamento seja no Senado, onde trabalhou por um tempo, Ivanisa acompanhou os debates sobre transferĂȘncia de renda desde os primeiros momentos. Ela assessorou a redação do capĂ­tulo da Ordem Social da Constituição. E as reuniões que Suplicy teve depois no governo Itamar Franco para implantar sua proposta de renda mĂ­nima, depois que seu projeto nesse sentido foi aprovado pelo Congresso Nacional. Suplicy propunha que os programas sociais, que entregavam bens em espécie, como leite ou cestas bĂĄsicas, fossem substituĂ­dos por um programa universal, que garantisse ao cidadão brasileiro uma renda mĂ­nima, um valor bĂĄsico que não seria reduzido.

Ao longo do tempo, a ideia original de Suplicy foi evoluindo para programas que tentassem alcançar esse objetivo. Os primeiros esboços foram feitos no governo Itamar Franco. Depois, a primeira experiĂȘncia mais ampla foi implementada pelo então governador do Distrito Federal, Cristovam Buarque, em 1995: o programa Bolsa-Escola, que garantia um salĂĄrio-mĂ­nimo a toda famĂ­lia com filhos entre 7 e 14 anos matriculados na escola pĂșblica. O governo Fernando Henrique, mais tarde implementou o Bolsa-Escola em nĂ­vel federal. E criou, então, o que foi o grande ganho de ampliação do programa, o Cadastro Único, unificando beneficiĂĄrios dos programas sociais que havia antes.

"Suplicy sequer era escutado"

No inĂ­cio do governo Lula, de certa forma, a ideia foi abandonada quando se preferiu, então, reforçar a polĂ­tica de combate à fome, o Programa Fome Zero. Ivanisa conta, então, que essa proposta do Fome Zero começou a patinar e receber crĂ­ticas na primeira metade do primeiro mandato de Lula. Até que, em 2004, o então presidente do PT, José Genoino, pediu a ela que ajudasse o então ministro do Desenvolvimento Social, Patrus Ananias, a implementar algo na linha de retomada da proposta de renda mĂ­nima, que acabou virando o Bolsa-FamĂ­lia. "Se conseguiu operacionalizar o Bolsa-FamĂ­lia e depois foi havendo a sua expansão, até chegar à cobertura de 45 milhões de pessoas", rememora ela. O problema, porém, é que a ideia original de Suplicy foi sendo claramente abandonada. "Na verdade, Suplicy sequer era escutado, sequer era recebido em audiĂȘncia", conta ela.

"O mundo polĂ­tico é um mundo inteligente", comenta a cientista social. "Percebeu que isso tem impacto também eleitoral e distorceu o programa, mantendo-o com carĂĄter assistencial, como uma ferramenta de campanhas, uma ferramenta polĂ­tica, o que nunca se pensou".

"Debates eleitorais infrutĂ­feros"

Agora, quando o Bolsa-FamĂ­lia estĂĄ perto de deixar de existir para ser substituĂ­do pelo AuxĂ­lio-Brasil, o aspecto do cĂĄlculo eleitoral em torno da sua manutenção é evidente. Antes de ser eleito presidente, Bolsonaro criticava o programa do PT. Chegou a chamĂĄ-lo de "bolsa-esmola". Hoje, o AuxĂ­lio Brasil é visto como ferramenta fundamental para tentar vir a criar chances para a sua reeleição. Gerando o debate entre o nĂșcleo polĂ­tico e o nĂșcleo econômico do governo em torno da admissão de se furar o teto de gastos para pagar o auxĂ­lio no valor de R$ 400.

"Se o programa, como Suplicy pensou, fosse de fato uma polĂ­tica de Estado, nem haveria essa discussão sobre teto de gastos, porque o valor estaria previsto no Tesouro", comenta Ivanisa. "HĂĄ um grande problema original no atual governo que é essa fusão em uma Ășnica pasta de Fazenda e Planejamento. Eu sou funcionĂĄria original do Ministério do Planejamento, e uma das funções desse ministério é planejar o paĂ­s em médio prazo. O grande problema com esse programa e com o que estĂĄ definido na medida provisória do AuxĂ­lio Brasil é que não estĂĄ definida a fonte de financiamento. Esse programa deveria ser uma obrigação do próprio Tesouro, uma obrigação de Estado", defende.

"Os governos do PT tinham a obrigação de ter adotado esse programa como um programa de Estado, não como um programa compensatório. Mas, em vez disso, ficamos nesses debates eleitorais infrutĂ­feros, que não trazem um ganho efetivo para a população", conclui Ivanisa.

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