O estudo diz que a violĂȘncia ocorre de formas variadas, conforme a faixa etĂĄria da vĂtima. Crianças morrem na maior parte das vezes em decorrĂȘncia de violĂȘncia doméstica, cujo autor é conhecido, como um pai ou um padrasto. Um caso de grande repercussão neste ano foi a morte de Henry Borel, de quatro anos. O namorado da mãe do garoto, o ex-vereador do Rio conhecido como Dr. Jairinho, foi preso acusado do crime - ele nega.
No ano passado, 300 menores de até nove anos de idade foram mortos de forma violenta no PaĂs. Foi praticamente um caso por dia, boa parte deles dentro da própria casa. O mesmo vale para a violĂȘncia sexual, em geral também cometida dentro de casa por pessoas próximas. JĂĄ os adolescentes, que representam a maioria das vĂtimas, são mortos majoritariamente na rua. São vĂtimas, apontam os pesquisadores, da violĂȘncia armada e do racismo. O estudo também destaca a alta proporção de jovens mortos durante intervenções policiais.
"A violĂȘncia doméstica é um crime contra a infância. A violĂȘncia urbana é um crime contra a adolescĂȘncia, que atinge principalmente meninos negros", diferencia Florence Bauer, representante no Brasil da Unicef. "Embora sejam fenômenos complementares e simultâneos, é crucial entendĂȘ-los também em suas diferenças para desenhar polĂticas pĂșblicas efetivas de prevenção e resposta às violĂȘncias", acrescenta ela.
A diretora executiva do Fórum Brasileiro de Segurança PĂșblica, Samira Bueno, afirma que a violĂȘncia contra crianças e adolescentes é um problema grave, que precisa ser cada vez mais discutido por nossa sociedade. "São vĂtimas dentro de suas próprias casas enquanto são pequenas e sofrem com a violĂȘncia nas ruas quando chegam à pré-adolescĂȘncia", diz ela. "O poder pĂșblico precisa encarar a questão com seriedade e evitar que mais vidas sejam perdidas a cada ano."
O trabalho é uma anĂĄlise inédita dos boletins de ocorrĂȘncia das 27 unidades da Federação registrados nos Ășltimos cinco anos. Abrange mortes violentas intencionais (homicĂdio doloso, feminicĂdio, latrocĂnio, lesão corporal seguida de morte, mortes decorrentes de intervenção policial) e a violĂȘncia sexual contra crianças e adolescentes.
Entre 2016 e o ano passado foram identificadas 35.626 mortes violentas intencionais de crianças e adolescentes de 0 a 19 anos de idade no Brasil. Isso corresponde a uma média de 7,1 mil mortes violentas por ano. São cerca de 20 por dia.
A maioria das vĂtimas de mortes violentas neste perĂodo era de adolescentes; 31 mil casos estavam na faixa etĂĄria de 15 a 19 anos. Entretanto, no mesmo perĂodo, foram identificadas pelo menos 1.449 mortes violentas de crianças de até nove anos de idade. O nĂșmero dessas mortes vem aumentando desde 2016, chegando a 300 crianças em 2020.
Olhando apenas para a primeira infância (até quatro anos), os dados são ainda mais preocupantes. Nos dezoito Estados que dispunham dos dados completos para o perĂodo, as mortes violentas de crianças de até quatro anos aumentaram 89% de 2016 a 2020. Passaram de 121 casos para 229.
O aumento foi puxado pelo crescimento do nĂșmero de mortes por arma de fogo nessa faixa etĂĄria, que triplicaram nesse perĂodo. Foram de 28 para 85. Nos Ășltimos anos, o governo Jair Bolsonaro tem flexibilizado o acesso a armas de fogo para civis, sob o argumento de ampliar as oportunidades de legĂtima defesa aos cidadãos. Especialistas criticam a polĂtica e apontam riscos de aumento da mortalidade com mais armas em circulação.
Entre as crianças de até nove anos mortas de forma violenta, 44% eram brancas; 33% eram meninas. Do total, 40% morreram dentro de casa; quase metade (46%) perdeu a vida por causa do uso de arma de fogo; e 28% pelo uso de armas brancas ou agressão fĂsica.
Meninos negros lideram nĂșmeros de vĂtimas jovens de homicĂdio
Em todas as idades, as principais vĂtimas de mortes violentas são os meninos negros. O perfil, no entanto, se intensifica ainda mais na adolescĂȘncia. Para os meninos, a faixa etĂĄria dos 10 aos 14 anos marca a transição da violĂȘncia doméstica para a prevalĂȘncia da violĂȘncia urbana. Nesta idade, começam a predominar mortes fora de casa, por arma de fogo e por autores desconhecidos.
Quando os adolescentes chegam à faixa etĂĄria de 15 a 19 anos, essa transição no perfil da violĂȘncia letal estĂĄ consolidada. As mortes violentas tĂȘm alvo especĂfico: mais de 90% das vĂtimas são meninos, e 80% são negros. Esses meninos, pretos e pardos, morrem fora de casa, por armas de fogo. Em uma proporção significativa, são vĂtimas de intervenção policial.
Em 2020, nos 24 Estados em que hĂĄ dados (exceções são Bahia, Distrito Federal e GoiĂĄs), um total de 787 óbitos de crianças e adolescentes de 10 a 19 anos foram identificadas como "Mortes Decorrentes de Intervenção Policial". Esse nĂșmero representa 15% do total das mortes violentas intencionais nessa faixa etĂĄria, e indica uma média de mais de duas mortes por dia no PaĂs.
ViolĂȘncia sexual
A violĂȘncia sexual é um crime que acontece prioritariamente na infância e no inĂcio da adolescĂȘncia. Por causa de problemas com os dados de 2016, a anĂĄlise desses registros refere-se ao perĂodo entre 2017 e 2020. Nesses quatro anos, foram registrados 179.277 casos de estupro ou estupro de vulnerĂĄvel com vĂtimas de até 19 anos. É uma média de quase 45 mil casos por ano. Crianças de até 10 anos representam 62 mil das vĂtimas nesses quatro anos - ou seja, um terço do total.
A maioria das vĂtimas de violĂȘncia sexual é menina - quase 80%. Para elas, um nĂșmero muito alto de casos envolve vĂtimas entre 10 e 14 anos de idade, sendo 13 anos a idade mais frequente. Para os meninos, o crime se concentra na infância, especialmente entre 3 e 9 anos de idade. A maioria dos casos de violĂȘncia sexual contra meninas e meninos ocorre na residĂȘncia da vĂtima. Para os casos em que hĂĄ informações sobre a autoria dos crimes, 86% dos autores eram conhecidos.
De acordo com especialistas, a pandemia representou um risco ainda maior para esse tipo de crime. Com as crianças longe da escola e em um convĂvio social mais restrito, diminuem as chances de que sejam notados os sinais de abuso e o crime, denunciado.
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