Foto: Agência Brasil - EBC
Ainda no berço, crianças negras já sentem o peso de uma sociedade que as julga pela cor da pele. O racismo, esse câncer histórico brasileiro, não espera a adolescência, a escola ou o mercado de trabalho. Ele começa cedo nas creches, nas pré-escolas, nas ruas, nas famílias. E, pior, encontra silêncio, omissão e conivência.
O Panorama da Primeira Infância: o impacto do racismo, pesquisa nacional do Datafolha encomendada pela Fundação Maria Cecília Souto Vidigal, revela que uma em cada seis crianças de até 6 anos já foi vítima de racismo no Brasil. Os números são brutais e mais cruéis quando analisados sob a lupa do cotidiano: 54% dos casos ocorrem em creches e pré-escolas.
No Paraná, o problema ecoa com a mesma força, ainda que mascarado por discursos de "igualdade" e "democracia racial". Dados do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano de Curitiba (Ippuc), cruzados com informações do IBGE, mostram que pretos e pardos representam apenas 26% dos alunos matriculados na rede privada, mas são 64% da rede pública municipal e estadual.
"É o retrato fiel de um país que segrega desde o nascimento", afirma Cláudia Santos, doutora em Psicologia Social pela UFPR. "As escolas da periferia, onde a maioria das crianças é negra, são também as mais precarizadas. Quando uma criança preta sofre racismo, raramente há acompanhamento psicológico, orientação à família ou punição real. O racismo é institucionalizado."
E não é só nas escolas. Em Almirante Tamandaré, município da Região Metropolitana de Curitiba, professoras relatam casos de apelidos racistas em sala e silêncio das direções escolares. Os casos sequer chegam às autoridades. "A gente vê o racismo todos os dias, mas há medo de denunciar. As famílias temem represálias", diz Márcia Ribeiro, professora da rede pública há 18 anos.
A Lei nº 10.639/2003, que obriga o ensino da história e cultura afro-brasileira em todas as escolas, é ignorada em 70% dos municípios brasileiros, segundo levantamento da Universidade Federal de Goiás. No Paraná, menos de 20% das secretarias municipais de Educação cumprem integralmente a norma.
"É a prova de que a lei, sozinha, não muda nada. Falta vontade política, formação e coragem", diz Mariana Luz, CEO da Fundação Maria Cecília Souto Vidigal. "Quando a criança preta ou parda é discriminada na escola, o dano é irreversível. A primeira infância é a fase mais intensa do desenvolvimento humano o racismo destrói essa fase."
O Ministério Público do Paraná confirma que os registros de racismo e injúria racial entre crianças cresceram 38% entre 2020 e 2024. A maior parte ocorre em Curitiba, Colombo, Pinhais e Tamandaré. Mas, como sempre, as subnotificações transformam a tragédia em estatística tímida. Em Almirante Tamandaré, uma mãe denunciou uma professora de escola municipal por racismo e constrangimento da filha que teve que desenhar uma criança afrodescendente com cabelo feito de bombril. Aquela história antiga do "cabelo ruim", ao contrário da valorização social.

Em 2023, uma menina de apenas 5 anos, em Piraquara, recusou ir à escola após ouvir da colega: "Seu cabelo parece bombril". A escola chamou a mãe e o caso terminou em "reconciliação pedagógica". Nenhum professor foi responsabilizado.
Casos assim revelam o abismo entre o discurso e a prática. A Constituição Federal afirma que todos são iguais perante a lei. Mas, no Brasil, essa igualdade ainda depende da cor.
"Crescer ouvindo que é feia, que seu cabelo é ruim, que não é princesa da Disney tudo isso destrói o que a criança tem de mais puro: a autoestima", lamenta a pedagoga e ativista antirracista Paula Félix, fundadora do coletivo Infâncias Negras.
Ela cita o filme "Pequena Miss Sunshine", em que a menina é encorajada a ser ela mesma: "Enquanto lá o pai aplaude o sonho da filha, aqui o sonho de muitas meninas é se enxergar como brancas. É um genocídio simbólico."
Estudos da Fiocruz mostram que o racismo, quando vivido na primeira infância, eleva em até 40% o risco de depressão e evasão escolar na adolescência. O preconceito também se reflete na saúde: crianças negras têm menos acesso a acompanhamento nutricional e psicológico.
No Paraná, a mortalidade infantil entre bebês pretos é duas vezes maior do que entre brancos, segundo dados da Secretaria Estadual da Saúde (Sesa). E isso em pleno século 21.
"O racismo não é só uma ofensa. É uma política de morte", resume a socióloga Fernanda Lima, da PUC-PR. "Quando o Estado não garante escola de qualidade, alimentação e saúde, ele está dizendo quem merece viver e quem pode morrer."
A educação antirracista não pode ser apenas um tema de roda de conversa. É projeto de país. E começa com formação de professores, inclusão de conteúdos afro-brasileiros e punição rigorosa a práticas discriminatórias.
"Se o Brasil fosse um filme, a infância preta ainda estaria nos créditos iniciais, invisível", ironiza Luciana Pombo, jornalista e defensora dos direitos humanos. "Mas aqui no Portal, a gente não arquiva a verdade. A gente denuncia, até que alguém ouça."
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Fonte: Fonte: Agência Brasil e outros