O que deveria ser sĂmbolo de fĂ©, acolhimento e compaixão, tornou-se cenĂĄrio de dor, abuso e silĂȘncio. O MinistĂ©rio PĂșblico do ParanĂĄ (MPPR) denunciou um padre de 42 anos, afastado da Igreja, por 21 crimes cometidos contra 13 vĂtimas  entre elas, meninas de 12 anos e mulheres de atĂ© 48.
Os crimes incluem estupro de vulnerĂĄvel, importunação sexual, violação sexual mediante fraude, trĂĄfico de drogas e entrega de substância nociva à saĂșde. Uma verdadeira lista de horrores travestida de devoção.
As investigações  batizadas de Operação "Lobo em Pele de Cordeiro"  revelam um padrão de conduta macabro: um homem que usava o confessionĂĄrio como consultório da manipulação e a batina como escudo moral.
Em um paĂs de fĂ© profunda e contraditória como o Brasil, esses casos não são exceção. São o retrato de um sistema que falha em proteger os vulnerĂĄveis e, não raro, protege os agressores.
Segundo o MPPR, o religioso usava sua posição para aliciar, manipular e violentar. Em alguns casos, oferecia drogas e ĂĄlcool para facilitar os abusos. Outras vĂtimas relataram que ele se dizia "guiado por revelações divinas"  uma estratĂ©gia antiga dos predadores espirituais que exploram o medo e a culpa.
Esse tipo de conduta, infelizmente, Ă© familiar ao noticiĂĄrio mundial. Desde os escândalos do Vaticano e da Arquidiocese de Boston  que inspiraram o filme Spotlight, vencedor do Oscar Â, atĂ© casos recentes em dioceses brasileiras, o modus operandi se repete: autoridade, sigilo, abuso e silĂȘncio institucional.
A Igreja, que deveria ser refĂșgio, torna-se o cenĂĄrio do pecado mais devastador  aquele cometido contra os indefesos em nome da fĂ©.
O caso de Cascavel Ă© apenas mais um capĂtulo em uma longa história de silĂȘncio cĂșmplice e negligĂȘncia clerical.
A transferĂȘncia do padre para o Complexo MĂ©dico Penal de Curitiba, sem aviso ao MP, acendeu o alerta sobre possĂveis manobras para abrandar a punição.
O próprio MinistĂ©rio PĂșblico pede agora que o Tribunal de Justiça e a Arquidiocese expliquem o destino de recursos e bens paroquiais que teriam sido desviados.
Em nota, a Arquidiocese declarou "profunda tristeza e colaboração com as investigações". Ă o mesmo tom de lamento que se repete hĂĄ dĂ©cadas, enquanto as vĂtimas seguem lutando contra o trauma, a vergonha e a descrença.
"Quando o perdão Ă© usado como cortina para esconder o crime, o altar se transforma em cĂșmplice do inferno",
diz o teólogo e professor JosĂ© Carlos Gandra, especialista em Ă©tica e religião.
A psicóloga forense Marta Dourado, que estuda casos de abuso religioso, explica:
"O abusador eclesiĂĄstico tem um poder diferenciado. Ele não se impõe pela força fĂsica, mas pelo controle moral. As vĂtimas acreditam que se rebelar Ă© pecar. Ă uma prisão espiritual."
Essa dinâmica de dominação, segundo ela, Ă© o que torna o abuso religioso mais devastador que outros tipos de violĂȘncia.
O agressor não apenas fere o corpo  ele corrói a alma, destrói o senso de fĂ© e confiança no divino.
Em Cascavel, as vĂtimas variam entre adolescentes, mulheres em vulnerabilidade e atĂ© pessoas em tratamento contra vĂcios. A manipulação incluĂa o uso de "orações de cura", "unções espirituais" e rituais improvisados que terminavam em toques e atos sexuais.
Casos semelhantes se acumulam em todo o paĂs.
Em 2023, o padre JosĂ© Edilson de Souza, de Pernambuco, foi condenado a 23 anos de prisão por abusar de coroinhas.
Em Minas Gerais, um pastor evangĂ©lico foi preso em 2024 por manter uma "seita terapĂȘutica" que usava o nome de Jesus para coagir fiĂ©is a prĂĄticas sexuais.
No Rio Grande do Sul, um padre foi denunciado por estupro de coroinhas e desvio de dĂzimos.
E o padrão Ă© o mesmo: autoridade religiosa, vulnerĂĄveis e um sistema que hesita em responsabilizar.
A Igreja Católica no Brasil ainda carrega as marcas de uma estrutura patriarcal e autoritĂĄria, construĂda sobre o dogma da infalibilidade moral do clero. Essa mentalidade cria o ambiente perfeito para a impunidade.
Como explica a socióloga LĂgia Pires, da Universidade Federal do ParanĂĄ:
"Enquanto padres forem vistos como santos acima de qualquer suspeita, o mal continuarĂĄ disfarçado de bĂȘnção. A Igreja precisa de controle civil e transparĂȘncia, não apenas de orações."
A fĂ© não pode ser refĂșgio do crime. Quando o confessionĂĄrio se transforma em armadilha e o crucifixo em pretexto, o sagrado perde sentido.
A denĂșncia do MPPR Ă© um passo importante, mas tardio.
As vĂtimas  13 pessoas com idades e histórias distintas  tiveram suas vidas dilaceradas por alguĂ©m que prometia salvação.
E o mais cruel Ă© saber que esse mesmo padrão de horror se repete: de Boston a Cascavel, de igrejas barrocas a templos modernos, o "lobo em pele de cordeiro" continua à espreita.
"A cruz foi feita para redimir, não para esconder monstros",
resume a escritora e ativista feminista LetĂcia Fonseca, que acompanha casos de abuso espiritual no Brasil.
No fim, a questão que ecoa Ă© uma só: quantos lobos ainda vestem a batina no PaĂs da impunidade?
Ajude o jornalismo independente. Doe qualquer valor e envie sua mensagem para o: https://widget.livepix.gg/embed/ffba872b-6a00-465a-bdf0-6cb70bf5753c