A República das Notas Frias: corrupção e miséria em Almirante Tamandaré

Justiça recebe denúncia contra ex-secretário, servidores e empresários por falsificação de documentos em licitações; esquema revela o colapso ético de uma cidade que vive entre a miséria e a impunidade

Por Por Luciana Pombo - Blog da Luciana Pombo | Jornalismo que não arquiva a verdade em 04/10/2025 às 10:10:50

Investigação revela que servidores e ex-secretário falsificaram documentos para fraudar licitação milionária. Enquanto o dinheiro público sumia em carimbos e atas fantasmas, a cidade se afundava em miséria, lama e descrença.

O escândalo que o Paraná finge não ver

Enquanto Almirante Tamandaré figura nas estatísticas de pobreza, seus bastidores administrativos lembram uma série de House of Cards passada em ritmo de repartição pública: longas pausas, carimbos, papeladas e uma corrupção tão banalizada que nem gera mais indignação.

Mas o novo escândalo revelado pelo Ministério Público do Paraná (MPPR) mostra que a cidade se tornou, mais uma vez, palco do teatro da imoralidade.

A 4ª Promotoria de Justiça de Tamandaré, por meio do promotor Márcio Araújo Teixeira, denunciou Sérgio Luís dos Santos, ex-secretário de Administração e Fazenda, e os servidores Marta Regina de Souza, Carlos Alberto Vieira e Joaquim Francisco de Andrade por falsidade ideológica no Pregão Presencial nº 07/2015, um processo que deveria contratar serviços de mão de obra, mas terminou contratando um escândalo.

"As falsificações tinham objetivo claro: dar aparência de legalidade a um processo licitatório viciado desde o início", afirmou o promotor. "A manipulação de pareceres e a criação de atas falsas foram o mecanismo para direcionar o contrato à empresa escolhida."

A empresa em questão, Servtech Serviços e Recursos Humanos Ltda., saiu vencedora como se fosse o nome inevitável de uma licitação encenada. E foi assim que o dinheiro público virou um enredo de ficção ruim, desses que a gente desliga no meio por falta de credibilidade.


A coreografia da fraude


Os documentos do processo (0009963-12.2018.8.16.0024) revelam o passo a passo da farsa.
Sérgio Luís, o maestro do conluio, segundo o MP, aprovava cada etapa da licitação.
Joaquim Francisco, o chefe de licitações, ajustava os detalhes que garantiriam o resultado "correto".
Marta Regina e Carlos Alberto carimbavam ou "autorizavam" atas que jamais viram: assinaturas de papel, carimbos de mentira.

"A fraude foi construída com o cuidado de um artista e a frieza de um cirurgião", diz o laudo pericial.

As semelhanças gráficas entre as assinaturas eram tão evidentes que só a impunidade explica a ousadia. O esquema era rudimentar, mas eficiente. Como quase toda corrupção brasileira: tosca na forma, genial na malícia.

É o tipo de crime que não precisaria existir se houvesse transparência mínima, ou vergonha.

Um sistema feito para não funcionar


O artigo 299 do Código Penal é claro: falsidade ideológica é crime, punível com 1 a 5 anos de reclusão e multa.
Mas, no Brasil, a punição é um conceito que vive no papel. O mesmo papel que esses réus falsificaram, segundo o MP.

O caso está parado há sete anos.

"Enquanto a Justiça demora, o crime prescreve e o criminoso prospera", diz o jurista Modesto Carvalhosa, que há décadas denuncia a lentidão judicial como ferramenta de impunidade.

E é exatamente isso que se repete. A Lei da Ficha Limpa (Lei Complementar 135/2010) impediria a permanência de qualquer servidor acusado em função pública. Mas, em Tamandaré, continuam lá: sob o manto da presunção de inocência que virou presunção de eternidade processual.

A cidade é o retrato daquilo que o Brasil tem de mais perverso: a lei existe, mas não se cumpre.
O Decreto nº 10.024/2019, que regula pregões eletrônicos e busca eliminar as brechas de licitações presenciais, é solenemente ignorado por administrações que ainda preferem o papel. Talvez porque o papel aceita tudo, inclusive o crime.


A lama e o luxo: duas faces da mesma cidade


Enquanto os servidores assinavam documentos falsos, os moradores de bairros como Cachoeira, Bonfim e Jardim Roma conviviam com esgoto a céu aberto e promessas de asfalto que nunca saíram das licitações.

"A corrupção é o imposto que o pobre paga para sustentar o luxo do ladrão público", define a cientista política Rosane Guimarães, da UFPR.

Os números confirmam: Tamandaré tem o segundo pior Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) da Região Metropolitana de Curitiba, e quase 40% da população vive com renda inferior a meio salário mínimo, segundo o IBGE.

A cada nota fria, uma escola deixava de ser reformada. A cada assinatura falsa, uma família seguia sem creche ou médico.
É o que transforma um crime administrativo em tragédia social.


O Brasil real em versão "Tropa de Elite"


Foi apenas no meio da apuração que a semelhança com Tropa de Elite 3, O Sistema é o Sistema, ficou inevitável.
A cidade parecia um quartel da corrupção, onde os "burocratas de farda invisível" faziam o papel dos bandidos de colarinho.
Assim como no filme, o enredo é o mesmo: um sistema que se auto protege, que pune o soldado raso (ou o servidor pequeno) e mantém intocados os generais da corrupção.

"O sistema não é corrupto por acidente. Ele é desenhado para ser assim", resume um investigador da Deccor ouvido pela reportagem.

Tamandaré é a versão municipal da máxima de Tropa de Elite: "O sistema é f**, e ele não vai mudar"*.
Mas aqui, o Capitão Nascimento nunca chega.


O "House of Cards" da província


A comparação com House of Cards é inevitável, mas ainda modesta.
No lugar de Frank Underwood, temos secretários que fazem política de boteco e chantagem de cafezinho.
Os conluios são mais amadores, mas igualmente letais à democracia.

"Esses esquemas não derrubam governos, derrubam a confiança da população", analisa o sociólogo Leonardo Avritzer, da UFMG. "E sem confiança, não há Estado, há uma ficção institucional."

O seriado americano mostrava políticos manipulando Washington. Em Tamandaré, manipulam atas. Mas o princípio é o mesmo: poder pelo poder, sem qualquer serviço público real.

É a corrupção minimalista, mas persistente, que mata o Brasil em doses homeopáticas.


O que a lei prevê, o que a vida desmente


De acordo com o artigo 11 da Lei de Improbidade Administrativa (Lei 8.429/1992), atos que atentem contra os princípios da administração pública resultam em perda da função, suspensão dos direitos políticos e multa civil.

Nada disso ocorreu até agora.

"A lentidão judicial é o melhor amigo do corrupto", diz o juiz federal Antônio César Bochenek. "Enquanto a pena não vem, a vida segue e, na prática, a corrupção compensa."

E ela compensa.
Enquanto o processo dorme na 1ª Vara Criminal, os acusados circulam livremente pela cidade que deveriam ter ajudado a administrar.


Um retrato do Brasil em tamanho P


Em Tamandaré, a corrupção é microcosmo da nacional.
A Operação Radar, em Piraquara; a Pecúlio, em Foz do Iguaçu; e os escândalos de coleta de lixo em Curitiba são capítulos da mesma saga: um país que sabe investigar, mas não sabe punir.

"A corrupção é a mãe da miséria. Cada nota fria é uma criança com fome", diz o economista Eduardo Moreira.

E assim o ciclo se repete: pobreza gera dependência; dependência gera voto; voto mantém o poder nas mãos de quem lucra com o caos.


Quando a ficção é menos absurda que a realidade


Os políticos de House of Cards e os corruptos de Tropa de Elite ao menos tinham enredo.
Os de Tamandaré têm planilhas, atas falsas e a certeza da impunidade.
É o Brasil que não precisa de roteirista, porque a realidade já é escandalosamente literária.

"O que falta não é lei. É vergonha", diz Bochenek, sintetizando o drama brasileiro.


O silêncio que mata


O verdadeiro escândalo não está nas fraudes, mas na indiferença.
O povo, anestesiado, segue esperando a sentença que talvez nunca venha.
E é isso que permite que o ciclo continue: o crime sem castigo, a cidade sem esperança, o país sem rumo.

"Eles dormem em travesseiros de plumas compradas com o dinheiro que faltou para a merenda", confidenciou à reportagem um funcionário da prefeitura.

O Brasil virou a república das notas frias, e Tamandaré, seu microcosmo mais cruel.


Processo: 0009963-12.2018.8.16.0024 - 1ª Vara Criminal de Almirante Tamandaré
Fontes: MPPR, TJPR, DECCOR, CNJ, UFPR, UFMG, IBGE, entrevistas exclusivas
Edição: Blog da Luciana Pombo - Jornalismo que não arquiva a verdade
Arte e infográficos: Portal de Notícias da Jornalista Luciana Pombo

Tags:   licitação
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