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Artista visual Ana Matheus é a entrevistada no Dia do Orgulho LGBT+

Hoje (28) é celebrado o Dia Internacional do Orgulho LGBT+, a Radioagência Nacional está lançando mais um episódio do podcast TRANSformando as Artes, apresentando entrevistas com artistas transgêneros, que vão desde precursoras do transformismo até revelações da atual cena artista musical e do audiovisual.



Hoje (28) é celebrado o Dia Internacional do Orgulho LGBT+, a Radioagência Nacional está lançando mais um episódio do podcast TRANSformando as Artes, apresentando entrevistas com artistas transgêneros, que vão desde precursoras do transformismo até revelações da atual cena artista musical e do audiovisual. As publicações marcaram as sete semanas entre o Dia Internacional de Combate à Homofobia, comemorado em 17 de maio, e o Dia Internacional do Orgulho LGBT+.

Para a artista visual Ana Matheus Abbade estas datas de celebração são necessárias, porque as pessoas se encontram - muitas viajam de vários lugares - para ver como a liberdade delas pode existir, de que a autonomia dela pode existir, de que lutas históricas podem existir:

"Então, a importância desses momentos é para se discutir todos esses assuntos, mas, antes de tudo, entre nós nos encontrarmos, entre nós celebrarmos que estamos vivas, entre nós construirmos alianças e construirmos pontes que permitam acessos, que permitam remunerações, que permitam um lugar de informação. E o que eu acho muito valoroso desse podcast que é justamente estender, não um dia da visibilidade, mas um mês completo, né. Porque essa vida não existe só um dia. E também não adianta colocar todos os eventos da cidade em um único dia. É um grande festival mesmo."

Este sétimo episódio, que fecha o mês de junho, a entrevistada é a artista Ana Matheus, que nasceu em São Gonçalo, na região metropolitana do Rio de Janeiro, foi cofundadora e desde 2018 é diretora de comunicação da Casa Chama, em São Paulo, espaço que agrega projetos, estéticas e comunidades a partir da ONG de acolhimento para a comunidade LGBTQIA+.

Aos 28 anos, a jovem Ana Matheus, que se autoidentifica como uma travesti branca e não binária, está em cartaz, com sua primeira exposição individual, vencedora do Prêmio Recepção, no Ateliê 397, em São Paulo, exposição na qual desvela sentidos entre o oculto, a impermanência e a visibilidade, além de exposições coletivas no Rio de Janeiro e em São Paulo.

Sua arte atualmente está sendo desenvolvida com peças que são de papel, papel de arroz chinês, e carvão:

"Envernizo, no processo de vernizar, eu aplico pó de quartzo para fixar bem o carvão e evitar que outras partículas, principalmente a umidade, interfiram na permanência, né, assim, na duração da folha. Meu trabalho com desenho é muito desenho, mas ao mesmo tempo ele incorpora tanta picturalidade, camadas e noções de profundidade que tem um flerte com a fotografia e com a pintura também."

Ela começou com papel jornal, um material muito básico, mas que é cheio de personalidade:

"...porque ao tempo ele se tonifica, ele ganha cor. E ao começar a trabalhar com o carvão, que é a madeira queimada, e o papel, que é a madeira processada, ou seja, dois materiais distintos, da mesma origem, eu comecei a perceber que não era necessário o meu trabalho dizer para onde ele iria, mas sim compreender o próprio comportamento que o papel e o carvão, em sua interação, em sua junção, me agregam."

Ana Matheus afirma que aprende muito sobre a vida ao fazer arte: "... assim, principalmente a me despertar em torno do que é o erro, em torno do que é o acerto, em torno do que é o que eu quero, em torno do que é o que o desenho quer, porque às vezes aquilo que eu desenho que está mais lindo eu assopro um pouco perto sem querer e ele se desfaz inteiro."

TRANSformando as artes

A série teria sete episódios, um por semana, publicados sempre às sextas-feiras, com entrevistas feitas com artistas transgêneros. Algumas entrevistas já foram publicadas pela Agência Brasil, como parte das comemorações do Dia da Visibilidade Trans, em 29 de janeiro, a proposta foi revista e ampliada para os ouvintes da Radioagência Nacional, que terão a oportunidade de conferir as entrevistas completas em áudio, além de outras artistas que não integraram a série original da Agência Brasil.

A novidade é que teremos mais um episódio bônus na próxima sexta-feira. Com a dona da voz da nossa vinheta, a cantora lírica e pianista Vívian Fróes.

PODCAST TRANSFORMANDO AS ARTES

SOBE SOM PRECISO ME ENCONTRAR – LINIKER🎶

Deixe-me ir

Preciso andar

Vou por aí a procurar

Rir pra não chorar

CAI A BG🎶

EPISÓDIO 7: ANA MATHEUS ABBADE

ANA MATHEUS: Acho que a nossa maior luta hoje é a luta do tempo. Nos tiram tempo para dormir, nos tiram tempo para o lazer, nos tiram tempo para ter atenção, transformam todo o nosso tempo em criptomoeda e, no final das contas, tudo está mais caro, a vida está mais difícil e estamos exaustos. A arte acho que entra nesse lugar da exaustão e nesse lugar de transborde. É quando um copo seco transborda, quando um copo derramado se enche. Entende?

SOBE SOM PRECISO ME ENCONTRAR – LINIKER 🎶

Se alguém por mim perguntar

Diga que eu só vou voltar

Depois que me encontrar

CAI A BG🎶

MARI: Natural de São Gonçalo, na região metropolitana do Rio de Janeiro, a artista visual Ana Matheus Abbade foi cofundadora e desde 2018 é diretora de comunicação da Casa Chama, em São Paulo, espaço que agrega projetos, estéticas e comunidades a partir da ONG de acolhimento para a comunidade LGBTQIA+.

Aos 28 anos, ela se autoidentifica como uma travesti branca e não binária e está em cartaz, com sua primeira exposição individual, vencedora do Prêmio Recepção, no Ateliê 397, em São Paulo, exposição na qual desvela sentidos entre o oculto, a impermanência e a visibilidade, além de exposições coletivas no Rio de Janeiro e em São Paulo.

SOBE SOM🎶

MARI: Olá, eu sou Mariana Tokarnia, jornalista da Agência Brasil. Este seria o último episódio desta série de entrevistas com artistas trans, mas temos uma surpresa pra você, que nos acompanhou até aqui! Vamos ter um episódio bônus. Uma dica: ela está nos créditos desde capítulo.

Acompanhe agora a conversa profunda e reflexiva com Ana Matheus Abbade.

SOBE SOM LINIKER🎶

MARI: Eu queria primeiro que você se apresentasse, me dissesse quem é você, né, um pouquinho do seu trabalho, um pouquinho de você mesmo para além do trabalho.

ANA: Acho que essa pergunta sempre começa com uma risada, que é um pouco constrangedora também, se construir em definições. Meu nome é Ana Matheus, Ana Matheus Abadde. Eu vim de São Gonçalo, do Rio de Janeiro, mas cresci a maior parte da minha vida na cidade de Itaboraí. Toda aquela história de limitações de recursos. A arte era algo muito distante, né? Não tinha essa cultura de arte visual expoente, sabe? E aí, com 15 anos, eu me mudei para São Gonçalo para estudar e comecei a me interessar mais, assim, pelas possibilidades de inventar lugares no mundo, né. E nessa época eu pensava em várias coisas. Aí eu decidi por fazer artes visuais e não me formei na UERJ. Acabou que eu segui um caminho um tanto autodidata, assim, eu aprendi muito trabalhando no ateliê de outras artistas. Quatro, cinco anos trabalhando como assistência, sendo mão de obra, inclusive sendo também corpo de obra de arte em algumas situações. E só foi aqui em São Paulo, um tanto recentemente, que eu aprendi o melhor lugar para definir quem eu sou, quais são os termos aos quais posso me definir, é a minha própria arte. Porque falar de mim agrega tanto símbolo em torno do que eu faço e essa mistura às vezes enlouquece. Mas, voltando, foi somente aqui em São Paulo que eu comecei a ter um juízo, assim, certo, de que meu interesse com a arte começou com a minha mãe, quando eu era criança, que meu pai, na época, não gostava muito que ela trabalhasse, hoje ela é confeiteira. Recém-nascida, ela fazia sacolé pra vender, assim, na janela de casa, ela fazia pintura em tecido, de pano de prato, pra vender pras amigas, ou seja, ela foi uma mulher que me ensinou que é possível fazer algo com as próprias mãos e fazer isso ser um algo no mundo que te proporcione autonomia, que te proporcione emancipação, que te proporcione autoridade, que te proporcione um lugar, inclusive, sentimental de realização. Eu acho que o que eu faço é um pouco essa continuação do que a minha mãe me ensinou enquanto linguagem, enquanto língua, enquanto esse interesse em trabalhar com a mão, com os dedos, com os olhos, de pensar, imaginar detalhes, de acompanhar as escolhas. Depois disso tudo, pensar que a minha emancipação e a minha autonomia vêm através disso, eu acho que é para além de pensar em uma profissão, é para além de pensar em um meio, em um campo, em uma área de trabalho, mas sim pensar em uma forma de estar viva, me sentindo conectada com os meus propósitos, com os meus valores, com a maneira como eu observo o mundo e com a maneira que o mundo me observa.

MARI: Teve o papel da escola também, que foi meio definitivo para você pensar numa carreira, né. Interessante falar disso, né, da arte na escola, que às vezes é uma disciplina tão atacada ou mesmo deixada de lado.

ANA: Minha professora na época ela também me incentivava. "Olha, isso é um lugar para você." Ali também eu não tive muito apoio, eu também não tinha muita maneira de produzir tudo, era muito recreativo e as coisas depois viravam lixo e apenas, né. E aí depois quando eu fui pra faculdade, fui entendendo um pouco mais as relações de poder, as relações de interesses, esse vocabulário da arte, né, pesquisa, processo, prática blá blá blá. Isso foi me distanciando um tanto da arte, tanto que no começo da faculdade eu achava que eu ia fazer pesquisa, porque era tanto vocabulário que aquilo entrava muito mais na minha cabeça do que a própria fruição de fazer algo com a matéria e descobrir o que que eu posso chegar com isso. E aí eu abandono a faculdade porque também tinha diversos desafios, eu precisava começar a trabalhar. E aí na faculdade eu acabo que me distancio um pouco. E quando eu fui estudar na Escola de Artes Visuais do Parque Lage, que é no meio de uma floresta, eu faltava mais as aulas para ficar na floresta, percebendo as coisas do que na aula mesmo. Então acaba que o meu trabalho e o trabalho, obviamente, com aquilo que eu acredito, vai a partir justamente dessa reflexão entre o que eu posso fazer com o que eu tenho nas minhas mãos, com que tão pouco que eu tiver, eu consiga realizar algo e esse algo ir adiante para um outro algo. Quando eu penso em arte, quando eu penso em obra, eu penso muito nesse aspecto. Na generosidade de uma porta aberta que te leva para outras portas da sua imaginação, da sua compreensão de humanidade, de pertencimento com o mundo, de pertencimento consigo, de amar aos outros e a si.

MARI: Sim... E, Ana Matheus, eu queria que você me contasse um pouquinho do seu processo mesmo. Como é que é o seu trabalho? Porque a gente está aqui ouvindo, né? Descrever uma das suas obras que você goste ou que tenha um processo interessante que você queira compartilhar.

ANA: Atualmente eu tenho desenvolvido muitas peças que são de papel, papel de arroz chinês, e carvão. Envernizo, no processo de vernizar, eu aplico pó de quartzo para fixar bem o carvão e evitar que outras partículas, principalmente a umidade, interfiram na permanência, né, assim, na duração da folha. Meu trabalho com desenho é muito desenho, mas ao mesmo tempo ele incorpora tanta picturalidade, camadas e noções de profundidade que tem um flerte com a fotografia e com a pintura também. Eu comecei com papel jornal, ou seja, material muito básico, mas que é cheio, completo de personalidade, porque ao tempo ele se tonifica, ele ganha cor. E ao começar a trabalhar com o carvão, que é a madeira queimada, e o papel, que é a madeira processada, ou seja, dois materiais distintos, da mesma origem, eu comecei a perceber que não era necessário o meu trabalho dizer para onde ele iria, mas sim compreender o próprio comportamento que o papel e o carvão, em sua interação, em sua junção, me agregam. Eu aprendo muito sobre a vida fazendo o que eu faço, assim, principalmente a me despertar em torno do que é o erro, em torno do que é o acerto, em torno do que é o que eu quero, em torno do que é o que o desenho quer, porque às vezes aquilo que eu desenho que está mais lindo eu assopro um pouco perto sem querer e ele se desfaz inteiro. Junto com o tempo, essas figuras elas vão se alterando pela própria permeabilidade que a peça possui com o tempo. E quando eu falo com o tempo, eu falo com o ar, falo com o vento, falo da poeira. O papel jornal ele vai amarelando de uma maneira que eu não tenho controle. Então eu vejo o papel tão autor da obra quanto eu. Isso também atravessa o meu lugar ativista enquanto pessoa trans. Justamente fazer a partilha deste lugar de autoria. E não apenas ser eu a autora de um processo e a autora de um resultado, mas junto da minha relação com os materiais, construir objetos, construir sensações, construir permissões estéticas que possam, nas outras pessoas, ao encontro, levar a outros lugares da imaginação, do sentido, né? Porque a arte, acho que ela tem esse poder. No encontro com a arte, compreender a sua vida ali, explicada em uma única folha de papel. Em um único traço. Você vê a história da sua vida inteira em uma única imagem. Você ressignifica diversas questões a partir de um único som. Eu acho que hoje a arte ela tem um pouco esse ativismo mesmo, de ser tudo aquilo que se precarize cada vez mais, que é a atenção, que é a escuta, que é a partilha, que é a comunidade, a impureza. Em um outro trabalho meu, que se chama Mulher de Pedra, eu faço uma substância que é acetato de ciproterona, bloqueador de testosterona, comumente usado, principalmente entre as travestis, e diluo no álcool e depois adiciono um pigmento de violeta genciana. E a partir desses três elementos químicos, eu faço disso a matéria que é o meu pigmento roxo. E esse pigmento roxo eu vou impregnando em alguns tecidos e seco esse tecido com outro tecido que absorve a mancha do outro e depois jogo mais álcool que dilui, desfaz essa mancha, que faz outra mancha. E depois eu desfaço todas as costuras pelo próprio sentir do tecido, construindo nesgas, dobras, costuras, pontos, como se a linha fosse o meu desenho, como se a linha fosse o meu carvão nesse momento. Que a questão principal e primordial não é a pictorialidade, mas sim a estrutura, o peso, a fisicalidade de que ela existe e a sua matéria, que é tão corporal quanto o meu corpo. Então, a obra, pra mim, ela é uma presença viva. Esse é muito o meu propósito, assim, quando eu penso e me vejo fazendo algo, assim. E não somente uma reprodução de algo que a universidade me ensinou. Eu precisei de anos pra desaprender tudo aquilo que já tinha sido engessado na minha mente, que eu comumente poderia parar e te explicar sobre a minha obra, a partir da minha pesquisa, do que que eu leio. Mas nada disso importa. O que importa é quando você, que está do outro lado, encontra, sente, absorve, constrói e segue adiante. Esse é o grande enigma.

MARI: Perfeito. E Ana Matheus, como é que você vê, no seu meio, a presença de pessoas trans nas artes visuais e também, se você quiser compartilhar, né, como você vai se entendendo também enquanto pessoa trans e como isso vai permeando a sua trajetória nas artes visuais.

ANA: É uma pergunta complexa, eu precisava três outras respostas. Mas a minha percepção das pessoas trans nas artes visuais hoje ela é essencial, necessária, urgente, ainda muito estigmatizada. Porque muitas das vezes a presença de pessoas trans em exposições é quase que uma escultura social, ela está ali porque ela é trans, ela está ali para preencher um espaço da culpa cisgênera. Mas somos organizadas e estamos nos instruindo cada vez mais a criar um lugar de pertencimento entre todos nós, onde a perspectiva das pessoas trans não seja mais aquela que é anteparada a um corpo original, né. A cisgeneridade se identificar enquanto cisgênero é justamente ir contra o determinismo que nos determina o que é o homem e o que é a mulher a partir de um essencialismo biológico, a partir de uma ciência datada, de um século passado que, anterior a isso e em outras culturas, não era existente. E que só é existente até hoje, porque fez parte de um processo colonial que perdura até hoje. Então, a presença das pessoas trans é essencial justamente para que as pessoas cisgêneras as percebam cisgêneras e para que outras pessoas trans, que estão em qualquer outro lugar do mundo, do Brasil, ou de Itaboraí, de onde eu vim, veja que a outra pessoa que está lá ocupando um espaço de visibilidade, de garantias, de autonomia, de emancipação, de prosperidade, de qualidade de vida e, antes de tudo, de dignidade, é possível. Quando eu tive essa minha experiência com a ONG da Casa Chama, o que mais me motivava era justamente inspirar, porque está tudo na internet, tudo no YouTube. Na minha época, quando eu era criança, a única referência LGBT que a gente tinha na televisão era Lady Gaga. Nem LGBT é, e nem existe essa pessoa LGBT. É uma comunidade, são pessoas. E hoje pensar que pessoas, pela internet, principalmente pela arte, elas podem alcançar a sua estrutura digna de vida, e eu não estou falando só do lugar do artista, eu estou falando do cenógrafo, do diretor de palco, do rapaz do equipamento, do técnico de som, eu estou falando do montador, fotógrafo, eu estou falando do videomaker, eu estou falando de toda uma economia criativa onde é importante a presença da pessoa trans, principalmente para desinstituir e denunciar espaços de violência que entre a cisgeneridade é compactuada, como situações de assédio, como situações de abuso, como situações de abuso laboral mesmo. Preciso dizer que a arte e a cultura ainda não têm nenhuma regulamentação e isso nos faz estar completamente vulneráveis em relação ao que se paga e ao que se recebe. Em grupos de oportunidades para pessoas trans, a gente vê vagas que são de 100 reais para a pessoa trabalhar mais de 10 horas. Nós não estamos disputando um lugar de celebridade, de ser a nova outra antiga. Não existe a nova Roberta Close, não existe a nova Tamalip, não existe a nova Claudia Wonder. Somos todas a futura continuação de um saber que por muito tempo foi silenciado, de um saber que por muito tempo foi agenciado, de um saber que por muito tempo foi abafado, porque a nossa literatura era vista como pornográfica, falar sobre nós era visto como pornografia, encontro entre pessoas trans era ponto de prostituição, encontro de pessoas trans era bagunça e lugar de gente errada. E isso é uma imaginação que é muito importante de ser desfeita. Isso é uma imaginação que é muito importante de ser trabalhada. Não para fazer a defesa da família do bem, aristotélica. Mas para falar de dignidade mesmo, para falar sobre alimentação, para falar sobre pessoas trans que suicidam por não ter o que comer, porque não conseguem trabalho. E para além do tráfico e da prostituição, a arte é um dos poucos lugares onde elas historicamente têm acesso e há alguma autoridade. Não é um movimento recente, é um movimento muito antigo que, na realidade, sustentou o teatro desse Brasil durante a ditadura. A maior parte dos diretores e atores e atrizes precisaram entrar em exílio e justamente as travestis estavam lá para atuar e para dirigir. Essa é a história do Teatro Rival. Olhar hoje ainda essa busca pela autonomia, essa busca por contar uma história, não é só um desejo pessoal meu de contar quem sou eu, Ana Matheus. É, antes de tudo, construir próximas portas para próximas vidas. Eu acho que a gente tem que trabalhar para fazer vida. Tudo que eu faço na minha vida, meio que eu paro e penso. Isso faz vida ou isso faz morte? Isso vai me fazer continuar viva ou isso vai me levar a perpetuar mais mortes? Seja a minha fala, seja a minha coerência. Inclusive, na minha incoerência, me corrigir e estar aberta para projeções, estar aberta para aprender, porque são obviamente ensinamentos que gerações passadas não tiveram. Meus pais, que têm 52 anos, 53 anos, eles estudaram em uma escola ainda que era da ditadura militar. Então eles não tiveram esse tato. Então acho que o lugar da transformação que as travestis, as pessoas trans, os homens trans, as pessoas não binárias, as pessoas intersexuais chegam, principalmente pelo campo da arte, é um lugar de denúncia, que o mundo cisgênero está colapsado. Não existe só o homem e a mulher, existe o intersexual que é mutilado quando nasce, existe a travesti, existe a pessoa não binária, existe a pessoa agênero, existe uma gama de nomes que não são nomes, são vidas. E assim como todas as vidas têm direito a se autoidentificar, em autoidentificação é uma estratégia, é um posicionamento político. E isso me faz entender quem eu sou e é a partir daí que eu me vejo, inclusive me questionar a que padrões eu, pertencente ao mundo atual, necessito aderir ou me adequar pra poder ser compreendida enquanto uma pessoa trans, enquanto uma pessoa. Porque para algumas pessoas eu não sou uma pessoa trans o suficiente, para outras eu não sou um homem suficiente, para outras eu nunca serei uma mulher suficiente. Então, é um lugar, quem é suficiente? Aonde é essa busca? Isso é uma busca? Ou isso é apenas um lugar de violência colonial que a gente está até agora querendo manter para construir a hereditariedade, para construir os limites da propriedade, pra gente construir ainda os limites de um mundo cisgênero patriarcal. Quando eu comecei, eu comecei com as palavras. Eu dizia travesti é o poder, unha é navalha, revide, unhas rasgarão cidades. São frases soltas que eu rabiscava na cidade com esmalte e deixava lá. E muitas das vezes as pessoas fotografavam e marcavam sem nem saber que era eu, até eu receber um e-mail de alguém em Brasília que viu que eu escrevia isso Unha é navalha, e como isso tocou ela, porque lá em Brasília também existia esse conhecimento coletivo de que a unha travesti é uma navalha. O quando eu falo navalha, não é um instrumento de violência e de agressão, que também pode ser. Mas um instrumento de ressignificação do seu corpo, não como um corpo menor, não como um corpo subalternizado, não como um corpo que é um corpo descartável mas um corpo que é instrumento, um instrumento que separa, um instrumento que junta, um instrumento que acaricia e é assim que até hoje eu vou compreendendo e entendendo também no momento de transição que não tenha de obedecer parâmetros que não sejam outros além dos meus e de um tempo que não seja outro além do meu.

MARI: Perfeito, eu acho que pra gente terminar, né, até fazendo reflexão sobre o próprio podcast, que começa ali no dia de luta contra a LGBTfobia e termina no dia do orgulho, né. Fico pensando que é um caminho interessante para a nossa sociedade, um dia a gente conseguir chegar nesse orgulho mesmo, de quem somos, de todas as pessoas ao nosso redor, de respeitar quem as pessoas são, né?

ANA: Sim, a maior importância desses momentos são porque as pessoas, as monas se encontram, viajam de vários lugares para se encontrar e para ver como a liberdade delas pode existir, de que a autonomia dela pode existir, de que lutas históricas podem existir. Então, a importância desses momentos é para se discutir todos esses assuntos, mas, antes de tudo, entre nós nos encontrarmos, entre nós celebrarmos que estamos vivas, entre nós construirmos alianças e construirmos pontes que permitam acessos, que permitam remunerações, que permitam um lugar de informação. E o que eu acho muito valoroso desse podcast que é justamente estender, não um dia da visibilidade, mas um mês completo, né. Porque essa vida não existe só um dia. E também não adianta colocar todos os eventos da cidade em um único dia. É um grande festival mesmo. Ah, virou uma festa a parada LGBT. É uma festa! E é no carnaval que a política do Brasil se fez. E é no carnaval que a gente discute muita coisa sobre racismo até hoje. E é no carnaval que a gente conversa sobre muita coisa séria. E isso é um dom brasileiro, se eu puder usar esses termos. Então, acho que a importância desse lugar, da turistificação da parada, da mobilização sobre as marcas durante esse tempo. Existem poucas marcas que estão procurando as pessoas, existem poucas marcas que realmente fazem pesquisas sérias, profundas, existem poucas marcas que possuem dentro delas, nos seus setores de diversidade, pessoas de diversidade, e aqui eu não falo somente sobre as pessoas LGBTs eu falo das pessoas PCDs, eu falo das pessoas pretas, eu falo das pessoas neurodivergentes também, porque também existem gêneros neurodivergentes que não são as mesmas coisas que cisgêneros e o maior problema da vida deles é a necessidade do mundo em fazê-los se sentir adequados ao mundo cisgêneros. Então, acho que o importante nesse momento todo é trazer a revolta à consciência, é trazer a motivação da vida, é trazer a celebração, é trazer a remuneração, a recompensa, a reparação. E aqui talvez eu faça mesmo um chamado, assim, para as marcas de publicidade que cada vez mais diminuem seus orçamentos, porque para a influencer pagam 100 mil, mas quando vão chamar uma pessoa trans para uma publicidade querem pagar mil reais, mesmo que ela seja uma influencer com mais ou menos seguidores do que a outra. Então é esse lugar de precariedade é esse lugar de desrespeito é esse lugar, que não é nem de purple washing, pink money, é um lugar ético mesmo, é um mal-caratismo então que durante essa semana que durante esse mês as marcas tragam mais, durante o ano, algo com impacto, algo com uma credibilidade que eduque o público dela, inclusive, sobre essas questões. Que não tratem essas questões como 'ah, eu sei que isso existe, mas que bom que você está aí fazendo esse trabalho'. Tá, e aí? A diferença alastrante existe e o que importa? Nada. Eu acho que é sair dessa estagnação, é sair desse momento ainda, no Brasil de muitos toques e aderir a ações diretas e apoiar diretamente artistas que estão ali produzindo, que estão ali continuando com o trabalho há anos que estão ali fazendo, descobrindo com o seu próprio trabalho, lugares no mundo, e fazê-los crescerem e apoiá-los e motivá-los e expandir e recomendar e indicar e defender. Porque a gente tem todas as instituições do Brasil para defender a Lígia Clark, todas as instituições do Brasil para defender o Sérgio Camargo, para defender qualquer outro escritor de livro, mas poucas estão para tratar de uma maneira seriamente a construção de uma antologia poética de uma travesti, a construção de uma antologia, de um Catálogo Raisonné de uma artista travesti. Eu falo lugar de travesti porque me reconhecem como travesti não binário, mas isso se aplica a toda a gama de diversidade. Então, eu tento que no meu trabalho essas coisas não estejam somente, como lá no começo, de uma maneira direta, objetiva, dita com todas as letras, 'travesti é o poder'. Mas tento no meu trabalho, dentro das próprias relações institucionais e políticas, trazer esses jogos e trazer essas necessidades, essa demanda. Quem é que vai ser a monitora? Quantas pessoas trans trabalham aqui? O que vocês podem fazer em relação a uma meta de impacto pra vidas que vocês dizem que importam, então, já que meu trabalho importa? Porque se meu trabalho também não importa, o que importa? Não que o que eu faço seja tudo, mas é o quadrado preto sobre a tela branca. Então, eu acredito nisso. Que a gente deve apoiar, a gente deve se sentir pessoalmente também responsáveis em apoiar a causa, mas também pessoalmente em cobrar com que as marcas façam ações, que façam campanhas, que façam tudo o que elas puderem fazer, tudo o que elas fazem durante o ano inteiro, inserindo pessoas trans, porque tem mães que são trans, tem pais que são trans, tem pais que gestam, tem trans que namoram, tem Natal de pessoas trans, tem Ano Novo com pessoas trans, tem Páscoa, que as pessoas trans também podem comemorar, quem é adepta ao cristianismo. Então, tem tantos momentos durante o ano inteiro aonde nossas corpas podem estar presentes. E acho que esse momento dessa semana, desse dia, desse mês, que é junho, é pertinente pontuar. A gente pode estar presente em todo calendário e aí talvez um dia não seja necessário celebrar. Mas vai ser necessário celebrar também porque muita gente morreu e muita gente morreu na calçada e enterrada indigente porque a família não apoiava, porque a família não aceitava e a família nem sabia onde a pessoa estava. Então a gente tem sim que celebrar a vida durante esse tempo, a gente tem sim que celebrar a nossa arte, a gente tem sim que exigir com toda a revolta e com toda a celebração que possa ter.

MARI: Perfeito, é isso. Ana Matheus, muitíssimo obrigada viu?

ANA: Nada, querida, eu que agradeço, viu?

SOBE SOM LUA DESERTA FILIPE CATTO 🎶

Lua deserta

Chova dourada

Lua deserta

O nascimento de Vênus

CAI A BG🎶

CRÉDITOS:

MARI: Você ouviu o sétimo episódio do Podcast Transformando as Artes. Uma produção da Radioagência Nacional em parceria com a Agência Brasil para marcar as sete semanas entre o Dia Internacional Contra a LGBTfobia, comemorado em 17 de maio, até o Dia Internacional do Orgulho LGBT, dia 28 de junho. Mas teremos um episódio bônus! Com a dona da voz da nossa vinheta, a cantora lírica e pianista Vívian Fróes.

A reportagem, entrevistas e narração foram minhas, Mariana Tokarnia.

Edição, roteiro e montagem de Akemi Nitahara

Revisão, coordenação de processos e implementação web de Beatriz Arcoverde

Gravação de Virgílio dos Santos

Versão em Libras da equipe de tradução da EBC

Utilizamos as músicas Preciso me encontrar, de Candeia, na voz de Liniker acompanhada de Ilú Obá De Min, e Lua Deserta, de Filipe Catto.

A produção também está disponível nas plataformas de áudio e com interpretação em libras no Youtube. Muito obrigada a você que nos acompanhou até aqui! Gostou da série? Confira outras produções da Radioagência Nacional, como o podcast infantil Crianças Sabidas e as entrevistas com intelectuais indígenas na série Tempo Circular. Mas não se esqueça que ainda teremos um episódio bônus do Transformando as Artes, na próxima semana. Até lá!

SOBE SOM FILIPE CATTO🎶

ENCERRAMENTO DA TRILHA DOS CRÉDITOS 🎶

Sobe som 🎶

Reportagem, entrevista e narração Mariana Tokarnia
Adaptação, edição, roteiro e montagem Akemi Nitahara
Revisão, coordenação de processos e implementação web Beatriz Arcoverde
Gravação Virgílio dos Santos
Versão em Libras Equipe de tradução da EBC

© Arte EBC

Direitos Humanos Podcast TRANSformando as Artes conversa com artistas transgêneros Rio de Janeiro 28/06/2024 - 07:00 Beatriz Arcoverde - Editora Web Akemi Nitahara - Radioagência Nacional Transformando as artes sexta-feira, 28 Junho, 2024 - 07:00 29:59

Rádio Agência Nacional

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