SÃO PAULO – Nos Ășltimos 20 anos, 51% das mulheres vĂtimas de violĂȘncia letal foram mortas por disparo de armas de fogo, segundo levantamento inédito feito pelo Instituto Sou da Paz (ISP) a partir de dados dos sistemas de notificação de violĂȘncia do Ministério da SaĂșde. Em 2019, ano dos dados mais recentes do Sistema de Informação sobre Mortalidade (SIM), utilizado no estudo, o percentual de mulheres assassinadas com emprego de arma de fogo fica um pouco abaixo, em 49%.
O perfil dessas mortes por emprego de arma de fogo aponta para uma maioria de mulheres negras (70,5%), jovens (51,8% tinham até 29 anos de idade) e da região Nordeste, que concentra 43% dos homicĂdios de mulheres por violĂȘncia armada.
A desproporção do assassinato de mulheres negras, que representam 7 a cada 10 mortes, mas 5 de cada 10 brasileiras, evidencia mais um aspecto perverso do chamado racismo estrutural, que historicamente torna vulnerĂĄveis as populações pretas e pardas do Brasil.
Em 2019, a taxa de mulheres negras mortas por disparos de arma de fogo (2,13/100 mil) foi o dobro da taxa de mulheres não negras (1,04/100 mil).
Quando essas mortes são divididas por local da ocorrĂȘncia da violĂȘncia letal, enquanto a taxa de morte por arma de fogo dentro de casa é quase a mesma entre mulheres negras (0,5/100 mil) e não negras (0,4/100 mil), fora do contexto doméstico, a taxa para as negras (1,2) é o dobro do que para não negras (0,5).
"Essa é a primeira vez que se faz a anĂĄlise do papel da arma de fogo na violĂȘncia contra a mulher, que tem tido papel significativo na morte de mulheres por agressão, com impacto desproporcional sobre as mulheres negras", diz Carolina Ricardo, diretora-executiva do Instituto Sou da Paz.
Para ela, os dados apontam para a vulnerabilidade imposta à população negra no Brasil e também para a insegurança da mulher na circulação por determinados espaços urbanos.
"Os dados de violĂȘncia letal e não letal armada contra a mulher no Brasil indicam que a recente proliferação de armas no paĂs deve ser um fator de risco para as brasileiras", afirma Carolina.
O Brasil vive um derrame de armas de fogo desde que o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) editou decretos que flexibilizaram a posse e o controle de armas, a partir de janeiro de 2019. Os efeitos foram imediatos. Em 2018, eram registradas pela PolĂcia Federal 46 armas por dia no paĂs. Em 2019 e 2020, foram, em média, 387 registros diĂĄrios.
Com isso, em dezembro de 2020, o Brasil chegou à marca de 2.077.126 armas legais particulares, ou 1 para cada 100 brasileiros, segundo dados do Fórum Brasileiro de Segurança PĂșblica (FBSP).
"HĂĄ quem argumente que, com mais acesso a armas, as mulheres podem se defender melhor sozinhas. Mas é uma falĂĄcia afirmar que mulheres vão passar a resolver conflitos apelando para a violĂȘncia ou vão colocar armas debaixo do travesseiro para se defenderem de um marido agressor", diz Marisa Sanematsu, diretora de conteĂșdo do Instituto PatrĂcia Galvão. "O mais provĂĄvel é que a presença de armas aumente o risco de violĂȘncia contra mulheres."
Pesquisa Datafolha de 2019 apontou que 75% das mulheres brasileiras se posicionavam pela proibição da posse de armas por entenderem que elas ameaçam a vida das pessoas. Entre homens, essa proporção era de 57%.
O relatório do Sou da Paz sobre violĂȘncia armada apontou que, em 2019, 1 a cada 4 mulheres (26%) assassinadas por violĂȘncia bélica estava dentro de suas casas. Entre homens, essa proporção foi de 11%.
Para Sanematsu, quando o assassinato de uma mulher ocorre dentro de sua residĂȘncia, é preciso "acender uma luz vermelha porque este é um forte indicativo de feminicĂdios Ăntimos que ocorrem no contexto de violĂȘncia doméstica".
Dados da saĂșde focam na vĂtima que buscou atendimento ou foi encaminhada ao serviço de medicina legal, ao contrĂĄrio dos da segurança pĂșblica, que se baseiam no boletim de ocorrĂȘncia e buscam identificar o autor da violĂȘncia. Não é possĂvel, portanto, a partir desses bancos do Datasus, identificar casos de feminicĂdio.
"Precisamos estabelecer a relação entre posse de arma de fogo e o risco de violĂȘncia doméstica", afirma Sanematsu. "A presença de uma arma de fogo em casa pode inibir a vĂtima de denunciar as violĂȘncias que sofre, levando a mulher a se submeter, calada, a agressões fĂsicas, psicológicas e sexuais que a tornam refém dentro de sua própria casa."
Levantamento feito pela Faculdade de SaĂșde PĂșblica da Universidade Harvard (EUA) aponta que, no contexto norte-americano, armas de fogo em casa costumam ser mais usadas para intimidar parceiros e parceiras Ăntimas do que para a defesa de crimes.
Ao analisar dados também do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan), que reĂșne notificações compulsórias de outros tipos de violĂȘncia que não resultaram em morte e que foram atendidas no sistema da saĂșde, o Sou da Paz identificou a crescente participação de armas de fogo em casos de violĂȘncia não letal —fĂsica, sexual ou psicológica— contra a mulher.
"Chama a atenção que, em 2019, 40% das mulheres que foram tipo de algum tipo de violĂȘncia não letal envolvendo arma de fogo estavam em casa no ato da agressão, o que faz da residĂȘncia o principal local de agressões entre as ocorrĂȘncias atendidas no sistema de saĂșde", diz Cristina Neme, coordenadora de projetos do ISP e uma das autoras do relatório.
Segundo Neme, a violĂȘncia armada não letal em 2019 ocorreu no ambiente doméstico em boa parte dos casos notificados de agressão fĂsica, em que 41% das violĂȘncias ocorreram dentro de casa, mas também nos episódios de violĂȘncia sexual (33%) e psicológica (53%).
Para a diretora-executiva do Sou da Paz, uma medida importante para a proteção dessas mulheres e a prevenção de novos episódios de agressões, que podem escalar para a violĂȘncia letal, estĂĄ na aplicação da lei nÂș 13.880, de outubro de 2019, que alterou a Lei Maria da Penha.
A lei estabelece que, em caso de violĂȘncia doméstica, a autoridade policial precisa verificar se o agressor possui arma de fogo, notificar à PolĂcia Federal ou ao Exército, que concedem porte ou posse de armas no Brasil, e determinar a apreensão imediata de arma de fogo sob poder do agressor.
Para ela, essa medida é especialmente importante quando se observa nos dados do Datasus que 1 a cada 4 mulheres que buscam atendimento médico para casos de agressão armada jĂĄ deram outras entradas no sistema por episódios de violĂȘncia.
"Essa violĂȘncia de repetição mostra que a saĂșde falha no momento do atendimento da mulher vĂtima da violĂȘncia porque a mulher volta a procurar o sistema para o mesmo problema", avalia Marisa Sanematsu.
"Sabemos que os serviços de saĂșde são a principal porta de entrada dessas vĂtimas e podem ser a porta de saĂda de uma relação violenta. Mas, para isso, os profissionais de saĂșde precisam estar capacitados, ter condições objetivas de trabalho para se envolver nesse atendimento e ter para onde encaminhar o caso: uma rede multidisciplinar estruturada", pontua. "Do contrĂĄrio, vai se limitar a curar as lesões e notificar o sistema, sem agir na prevenção da repetição e do agravamento dessa violĂȘncia."
Com informações da Folha de S. Paulo